É com alegria que tomo a palavra neste Congresso Mariano, depois do que ouvimos e vivemos, para reafirmar um ato de entrega pessoal e institucional, segundo o coração de Dom Bosco e a Fé da Igreja. Encerremos estes dias com um dos aspectos espirituais que Dom Bosco percebeu e viveu como importante a nível pessoal e qualificador da sua obra: a devoção mariana. Entreguemo-nos nas mãos maternas de Maria. Aqui, agora, neste lugar santo da presença de Maria, peçamos-lhe que torne fecundo na vida o que aqui vivemos, rezamos e escutamos.
Por isso, a minha palavra, depois do que escutamos e vivemos, é para fazer memória, a começar do início. Fazer memória é importante: significa reconhecer que isso não é nosso, foi-nos confiado e devemos entregá-lo às outras gerações.
Com grande simplicidade, apresento a mim mesmo e a cada um de nós alguns aspectos centrais da Presença de Maria em Dom Bosco, da sua e nossa devoção.
A senhora «de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, em cada uma de suas partes», descrita no sonho dos nove anos que tanto meditamos e refletimos neste Bicentenário do Sonho, é a Nossa Senhora amada pela tradição popular e pela devoção comum. D’Ela Dom Bosco evidencia sobretudo a bondade materna. Essa representação é a que mais condiz com o seu espírito, que o acompanhará até o último respiro de vida.
As Memórias do Oratório recordam muitos dos aspectos e devoções típicos da religiosidade popular: rosário em família, Ângelus, novenas e tríduos, invocações e jaculatórias, consagrações, visitas a altares e santuários, festas marianas (Maternidade, Nome de Maria, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Consolação, Imaculada, Nossa Senhora das Graças…). Atenção: quando dizemos aspectos típicos da religiosidade popular, não estamos a dizer algo fácil ou “automático”. A religiosidade popular é a quintessência, o concentrado, da experiência de séculos que nos é transmitida como um dom, do qual devemos apropriar-nos.
No período dos estudos em Chieri, surgem novos elementos que ligam a devoção mariana às escolhas espirituais do jovem Bosco, especialmente ao amadurecimento vocacional e à consolidação das virtudes que formam o bom seminarista. A Nossa Senhora do seminário é a Imaculada (em todos os seminários piemonteses, e naqueles influenciados pela tradição lazarista, a capela, desde o século XVII, é dedicada à Imaculada).
Este, de fato, é o aspeto que caracteriza a piedade mariana do jovem Dom Bosco (formado na escola de Santo Afonso): «a verdadeira devoção expressa-se sobretudo numa vida virtuosa, garante o mais poderoso patrocínio que se pode ter na vida e na morte».
Escreveu-o também no Jovem Instruído, em 1847: «Se fordes seus devotos, além de vos encher de bênçãos neste mundo, tereis o paraíso na outra vida».
Contudo, é no livreto O mês de maio consagrado a Maria Santíssima Imaculada para uso do povo (1858), que o santo enquadra explícita e insistentemente a devoção mariana popular e juvenil num contexto finalizado ao sério empenho concreto de vida cristã vivida com fervor e amor.
«Três coisas a praticar durante o mês inteiro: 1. fazer tudo o que pudermos para não cometer nenhum pecado durante este mês: que ele seja inteiramente consagrado a Maria. 2) Prestar-nos com grande solicitude ao cumprimento dos deveres espirituais e temporais do nosso estado… 3. Convidar os nossos parentes e amigos e todos aqueles que dependem de nós a participar das práticas piedosas que são feitas durante este mês em honra de Maria».
Outro tema, herdado da tradição devocional, é a ligação entre a devoção mariana e a salvação eterna: «Como o mais belo ornamento do cristianismo é a Mãe do Salvador, Maria Santíssima, a Vós recorro, ó clementíssima Virgem Maria, certo de adquirir a graça de Deus, o direito ao Paraíso, de recuperar em suma a minha dignidade perdida, se pedirdes por mim: Auxilium christianorum, ora pro nobis». Dom Bosco está convencido de que Maria intervém como advogada eficaz e poderosa mediadora junto a Deus.
Dez anos depois (1868), para a inauguração da igreja de Maria Auxiliadora, o santo escreveu e distribuiu um opúsculo intitulado Maravilhas da Mãe de Deus, invocada sob o título de Maria Auxiliadora. Nessa pequena obra é evidenciada a dimensão eclesial, sobre a qual Dom Bosco vai abrindo sempre mais o olhar e orientando as suas preocupações missionárias e educativas.
Os títulos de Imaculada e Auxiliadora, no contexto eclesial da época, evocam lutas e triunfos, o “grande embate” entre a Igreja e a sociedade liberal. Há uma leitura religiosa dos acontecimentos políticos e sociais, na linha da reação católica à descrença, ao liberalismo, à descristianização.
Dom Bosco, no entanto, para os seus jovens e para os seus Salesianos, continua a evidenciar sobretudo a dimensão ascético-espiritual e apostólica da piedade mariana. De fato, a prática do mês de Maria e das várias devoções tem como objetivo suscitar nos jovens a decisão de se empenharem mais nos próprios deveres, no exercício das virtudes, no ardor ascético (mortificações em honra de Maria), na caridade operosa e no apostolado generoso entre os companheiros.
Ou seja, Dom Bosco tende a atribuir à Imaculada e à Auxiliadora um papel decisivo na obra educativa e formativa e a valorizar, no clima de fervor mariano da época, os exercícios virtuosos e as práticas devotas para levar uma vida de purificação do pecado e da afeição a ele e de crescente totalidade no dom de si a Deus.
Ou seja: luta contra o pecado e orientação para Deus, santificação de si e do próximo, serviço da caridade, força para carregar a cruz e empenho missionário. Estes são os traços marcantes de uma devoção mariana que tem bem pouco de devocionismo ou sentimentalismo (apesar do clima da época e dos gostos populares, que, em todo caso, Dom Bosco valoriza).
Que caminho em Dom Bosco e no homem de fé, Dom Bosco! Entre o que vocês têm em seus corações, gostaria de evidenciar: também nós devemos caminhar na devoção. Não se pode ficar parado; se não se vai adiante, vai-se para trás… e ninguém pode fazer isso por mim!
Maria, na vida de Dom Bosco, é uma presença percebida, amada, ativa e estimulante, orientada à grande empresa da salvação eterna e da santidade. Sente-a próxima e entrega-se a Ela, deixando-se guiar e conduzir pelos caminhos da sua vocação (ele sonha com ela; ele a “vê”).
Em Nizza Monferrato, em junho de 1885, Dom Bosco entretinha-se na sala de visitas com as madres capitulares das Filhas de Maria Auxiliadora, com um fio de voz, muito cansado. Pedem-lhe que lhes deixe uma última lembrança. «Ah, então quereis que eu vos diga alguma coisa. Se eu pudesse falar, quantas coisas gostaria de dizer-vos! Mas estou velho, um velho decadente, como veem; com dificuldade até de falar. Só quero dizer-vos que Nossa Senhora gosta muito, muito de vós. E, como sabem, Ela está aqui entre vós –. O Padre Bonetti, vendo-o emocionado, interrompeu-o e começou a dizer, para distraí-lo: – Sim, é isso mesmo, isso mesmo! Dom Bosco quer dizer que Nossa Senhora é vossa Mãe e que Ela vos guarda e protege.
Trata-se de uma presença operante que acompanha, sustenta, guia, encoraja; que lhe fora dada: «Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice». Uma presença que estimula a viver conscientemente na presença de Deus numa tensão de totalidade: «Ao pensamento de Deus presente / faze com que os lábios, o coração, a mente / acompanhem o caminho da virtude / ó grande Virgem Maria. / Sac. Gio Bosco» (oração escrita pelo santo ao pé de uma de suas fotografias).
Esplêndido e essencial: o que não é presença viva na minha vida é ausência! O sentido da Presença, da Providência de Deus, da ação de Maria. Um caminho contínuo para cada um de nós e para todos nós juntos como Família Salesiana.
Dom Bosco relaciona estreitamente Maria à sua vocação e ao seu ministério. É bom retomar aqui a apresentação feita por Dom Bosco do sonho dos nove anos: «Tomou-me pela mão com bondade – olha – disse-me…. Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos». É a missão de salvação/transformação/formação dos jovens, através da prevenção, da educação, da evangelização e de um conjunto sólido de virtudes no educador.
O Filho de Maria ensina o seu método e o seu objetivo: «Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude».
A narração feita em 1873-74 do antigo sonho inspirador relaciona-se com muitos outros relatos de intervenções e inspirações interiores (os sonhos) em que o nosso santo atribuiu a Maria um papel de animação, guia e apoio do seu anseio e zelo pela missão de salvação dos jovens.
Neste contexto, é preciso situar e interpretar o que Dom Bosco reconhece como intervenções prodigiosas de Maria: as “graças” (espirituais e corporais) concedidas às pessoas, a sua poderosa proteção sobre o Oratório e a nascente Família Salesiana e o seu prodigioso desenvolvimento em benefício das almas.
As graças pessoais, a percepção da presença especial de Deus, por intercessão de Maria, que guia providencialmente a existência pessoal e institucional. Se não se percebe a Presença, fica-se à mercê do acaso.
Dom Bosco vive a devoção mariana como estímulo e apoio da tensão à perfeição cristã. Na mesma perspetiva, ele a inculca com sabedoria nos jovens para promover neles a vida cristã e estimulá-los ao desejo de santidade.
Ao valorizar a sensibilidade dos seus meninos e os gostos populares da piedade deles, Dom Bosco soube transformar a tendência devocional, marcada pelo sentimento romântico, num poderoso instrumento de formação espiritual (encorajando, corrigindo, orientando).
Maria nunca nos deixa onde nos encontra. Como no início dos Sinais do Evangelho de João, Ela sabe que devemos ser guiados, acompanhados… por um itinerário preciso: fazei o que ele vos disser e chegareis aonde EU vos espero, diz-nos Dom Bosco. Ver o invisível.
Para concluir, compartilho com simplicidade aquilo que vivemos como irmãos e que está no centro da nossa vocação. Gosto de terminar com esta parte, porque ela é a espinha dorsal da minha e da nossa vida. Se faz tanto bem a mim, a nós, certamente fará bem a todos.
Primeiramente as Constituições, que delineiam para nós os aspectos que caracterizam a nossa devoção mariana. O artigo 8 (colocado no primeiro capítulo, relativo aos elementos que garantem a identidade da Congregação Salesiana) sintetiza o sentido da presença de Maria na nossa Sociedade: Ela indicou a Dom Bosco o seu campo de ação, guiou-o e apoiou-o constantemente, e continua entre nós a sua missão de Mãe e Auxílio dos cristãos: «Confiamo-nos a Ela, a humilde serva na qual o Senhor operou coisas grandiosas, para nos tornarmos, entre os jovens, testemunhas do amor inexaurível do seu Filho».
O artigo 92 apresenta o papel de Maria na vida e na piedade do Salesiano: modelo de oração e de caridade pastoral; mestra de sabedoria e guia da nossa família; exemplo de fé, de solicitude pelos necessitados, de fidelidade na hora da cruz, de alegria espiritual; nossa educadora para a plenitude da doação ao Senhor e para o serviço corajoso aos irmãos. Daí uma devoção filial e forte, que se exprime na oração (o rosário quotidiano e a celebração das suas festas) e na imitação convicta e pessoal.
A melhor síntese, porém, encontra-se, a meu ver, na Oração de Entrega a Maria Santíssima Auxiliadora, que é recitada diariamente em cada uma das nossas comunidades depois da meditação. Foi o Padre Rua que a compôs em 1894, como expressão da consagração quotidiana no empenho de fidelidade e generosidade. Ela foi revista, mas conserva o mesmo esquema da antiga e o mesmo conteúdo. Eis o texto primitivo:
«Santíssima e Imaculada Virgem Auxiliadora, nós nos consagramos inteiramente a vós e prometemos trabalhar sempre para a maior glória de Deus e a salvação das almas.
Nós vos pedimos que volteis o vosso olhar compassivo sobre a Igreja, sobre o seu augusto Chefe, sobre os Sacerdotes e Missionários, sobre a Família Salesiana, sobre os nossos familiares e benfeitores e sobre os jovens confiados aos nossos cuidados, sobre os pobres pecadores, os moribundos e as almas do purgatório.
Ensinai-nos, ó Mãe terníssima, a copiar em nós as virtudes do nosso Fundador, especialmente a modéstia angélica, a humildade profunda e a caridade ardente.
Fazei, ó Maria Auxiliadora, que a vossa poderosa intercessão nos torne vitoriosos contra os inimigos das nossas almas na vida e na morte, para que possamos ser a vossa coroa com Dom Bosco no Paraíso. Assim seja».
Como se pode ver, a versão atual apenas retoma o texto do Padre Rua com alguns desenvolvimentos. Penso que é bom, de vez em quando, retomá-lo e meditá-lo. O texto está estruturado em quatro partes: promessa; intercessão; docilidade; entrega.
Na primeira parte (Santíssima) recorda-se o fim último da nossa consagração prometendo orientar todas as nossas ações unicamente ao serviço de Deus e a salvação do próximo, na fidelidade à essência da vocação salesiana.
Na segunda parte (Nós vos pedimos) condensa-se o sentido eclesial, salesiano e missionário da nossa consagração confiando à intercessão de Maria a Igreja, a Congregação e a Família Salesiana, os jovens, sobretudo os mais pobres, todos os homens redimidos por Cristo. Aqui é bem delineada a paixão que deve alimentar e caracterizar a oração salesiana: universalidade, eclesialidade, missionariedade juvenil.
Na terceira parte (Ensinai-nos) concentram-se as virtudes que caracterizam a fisionomia típica do Salesiano discípulo de Dom Bosco: coloca-se na escola de Maria para crescer na união com Deus, na castidade, na humildade e na pobreza, no amor ao trabalho e na temperança, na caridade ardente (bondade e doação sem limites aos irmãos), na fidelidade à Igreja e ao seu Magistério.
Na última parte (Fazei, ó Maria Auxiliadora), contamos com a intercessão da Virgem Auxiliadora para obter a fidelidade e a generosidade no serviço de Deus até à morte e a admissão na comunhão eterna dos santos.
Esta excelente síntese, que contém um programa completo de vida espiritual e delineia os traços fisionômicos da nossa identidade, pode servir-nos hoje de referência e de esquema concreto para o exame e a programação espiritual. E que assim seja para cada um de nós!