Não é possível iniciar esta reflexão sem fazer alusão ao sonho de Dom Bosco, conhecido como o ‘Sonho dos nove anos’, no qual se enquadra a temática geral deste congresso e que é ícone inspirador da identidade e missão de toda a Família carismática por ele fundada. Trata-se particularmente de uma síntese programática do método educativo salesiano: o ‘Sistema Preventivo’, que se transforma em método pedagógico e, por sua vez, em espiritualidade, pois é algo mais do que uma técnica, é um estilo de vida. Por isso, Piera Cavaglià (FMA) dirá que:
“O Sistema preventivo é vida, experiência na qual [o/a educador/a] se encontra imerso/a, estilo de relações, maternidade educativa, na lógica de uma entrega revestida de carinho e de cuidado amoroso […] O seu objetivo é orientar as pessoas para a qualidade de uma vida cristã comprometida e. como tal, aberta à solidariedade social, segundo a clássica fórmula de Dom Bosco: ‘Bons cristãos e honestos cidadãos’” 109.
Este método e espiritualidade preventiva, Dom Bosco ‘aprende-o’, ou seja, torna-o seu, entrando na escola de Maria, a Mãe e Mestra que o Senhor Jesus lhe deu no início do seu caminhar. São muitas as fontes carismáticas que põem em evidência a inspiração mariana do ‘Sistema Preventivo’ 110. Em diversos livros, tanto de mariologia como de espiritualidade mariana, mesmo não salesiana, indica-se a figura de Dom Bosco como uma ‘vida mariaforme’ 111, ou seja ‘uma vida guiada por María’ 112. O próprio sonho, conhecido como o ‘o sonho dos nove anos’, na realidade é um conjunto de sucessivos sonhos e visões que unificaram toda a sua vida em torno da Mestra, que o conduz ao amor misericordioso e operativo de Cristo. É assim que o percebe o mesmo Dom Bosco já no fim de 1887 durante a celebração da Eucaristia por ocasião da consagração do templo do Sagrado Coração em Roma 113. Sonho que se tornou muito frequente no inicio da sua vida, aos nove ou dez anos; aos dezasseis, vinte e um e vinte de dois 114; assim como nos anos prévios à fundação da Congregação Salesiana, quando tinha vinte e nove, trinta, trinta e um 115, trinta e três e quarenta e um, tornando-se cada vez mais esporádicos 116, mas por sua vez adquirindo uma amplitude de perspetivas, como é o caso do sonho missionário de 10 de abril de 1887 117. O Pe. Aldo Giraldo afirma que Dom Bosco encontrou em Maria tudo o que o seu espírito jovem desejava e necessitava para crescer: uma fonte de vida, um modelo insuperável e a força vitoriosa de Cristo 118, que o levou a ganhar a amizade dos jovens mais necessitados e mais carentes e a pôr-se à cabeça dos mesmos para guiá-los para Cristo, fonte de toda a beleza, verdade e bondade, mediante a pedagogia do coração; essa que só uma mãe sabe inspirar. Por isso, o estilo educativo salesiano não pode não ser mariano, porque ela é a inspiradora da metodologia e da espiritualidade que a sustenta. O educador e a educadora salesiana encontra nela “a síntese concreta das distintas componentes e a fonte vital do seu dinamismo e da sua fecundidade” 119.
A educação é um processo que pretende ‘tirar para fora’, em latim educere, quer dizer ‘fazer emergir’ o que há de mais genuíno e próprio de cada pessoa, aquilo que habita na profundidade do seu ser, da sua identidade. A partir da fé em Jesus Cristo, acreditamos que o que há de mais genuíno e próprio em cada ser humano é a sua identidade criatural e o seu ser ‘filhos no Filho’ (cfr Ef 1,5; Gal 3,26). O que habita no mais íntimo de si mesmo é a sua filiação divina, o seu ser criado para estar em comunhão com Deus e com toda a sua criação. Cremos que fora de Deus não há vida nem felicidade que perdure. Por isso, a Educação cristã é sempre uma participação na longa gestação dos filhos de Deus. Por conseguinte, a Educação cristã não é mais do que uma participação na missão educativa de Maria que, segundo S. João, está intimamente ligada à sua ‘maternidade espiritual’ para com toda a humanidade. No texto de Jo 19, 26-27 o Senhor Jesus do alto da cruz diz a sua Mãe: “eis o teu filho” e ao discípulo amado “eis a tua mãe”. Este não é o momento de nos determos na exegese desta importantíssima perícope bíblica, mas é sim oportuno recordar que estas palavras são ‘Palavras de Revelação, tanto da identidade desta mulher, como da identidade dos seguidores de Cristo. Ou seja, é vontade de Cristo que os discípulos de todos os tempos participem da sua filiação divina, participando também da filiação mariana. Por virtude do Espírito de Cristo, Maria é por assim dizer, o útero materno do ‘carácter de membro’ da Família de Deus. Não simplesmente num sentido platónico, mas que, na hora da morte de Cristo, ela foi de algum modo via de trânsito pessoal da actio personalis ipsius Christi, pela qual Ele deu à Igreja o seu pneuma: força operante e mediação que ‘faz emergir’ a identidade do ‘filho no Filho’ 120.
Em última análise, Maria por vontade de Cristo torna-se a mãe da nova humanidade que nasce pelos méritos do seu sangue redentor. Por conseguinte, como mãe, não somente tem uma participação na ‘geração’ dos filhos’ (cfr Ef 4,24) no fazer emergir a imagem de Cristo (cfr Gal 4,19), mas em todo o processo vital e existencial de configuração com a identidade mais profunda que todo o ser humano leva impresso no seu ser: o Filho eterno do Pai. Maria, como ‘Mãe espiritual’, ou ‘Mãe no Espírito Santo’ torna-se ‘educadora’, Mestra que colabora com o Espírito do Senhor para que cresça, segundo as leis naturais pelo Pai criada, a imagem de Cristo em cada ser humano.
Dom Bosco, no chamado ‘Sonho dos nove anos’ recebeu uma revelação privada do Senhor na qual Deus lhe permitiu ter plena consciência desta identidade mariana como Mãe e Mestra, e foi convidado a entrar na sua escola. Ou seja, não somente a deixar que Maria continuasse a educá-lo, configurando-o com Cristo, mas a participar no seu ‘ministério’ na Igreja, o da maternidade/paternidade que educa, especialmente aqueles filhos que o ‘mundo’ considera como perdidos. Ninguém mais do que Maria sabe que o Espírito do seu Filho sara os corações e os conduz às fontes de vida em abundância (cfr Jn 10, 10).
Como filhos e filhas de Dom Bosco, convido-vos a fazer um pequeno exercício: entrar na escola de Maria, para aprender dela, da sua trajetória, como ser educadores salesianos hoje; como educar os jovens de hoje à maneira de Maria. Para isso, perguntamo-nos: quem é esta mulher? Como no-la apresentam os Evangelhos, como no-la apresenta a Igreja desde as origens do cristianismo? Visto que, no fundo, os Evangelhos são a memória da Igreja nascente, que é escrita para os crentes de todos os tempos. Perguntamo-nos: como é que a recorda a Igreja da primeira hora? Quem responde a essas perguntas com muita clareza é o evangelista S. Lucas, na primeira parte do seu Evangelho, que é impropriamente chamada teologia da infância, pois na realidade é teologia da cruz, e assim deveria chamar-se: theologia crucis. Todos sabemos que Lucas escreveu os textos da infância de Jesus depois de narrar a morte e a ressurreição de Cristo, visto que a origem de Jesus só se aprende no final do seu caminho. Estes dados evangélicos situam Maria dentro da fé cristológica, não como o seu centro, mas intimamente ligada a ela.
No texto de Lc 1, 26-38 121, Maria é apresentada de um modo convencional, mas ao mesmo tempo, chama a atenção o facto de que faltam dados convencionais. Percebe-se que o narrador, intencionalmente reduz os dados, deixando a personagem em boa condição para uma criação narrativa, pois ao haver menos dados convencionais, dá ao autor mais possibilidade para destacar os elementos que expressam a sua essência. Por exemplo, no texto não se menciona a casa paterna de Maria, nem o seu clã de pertença; a cidade não é um dado de identificação, mas um dado situacional, “o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré”. Trata-se de uma apresentação muito ampla, com poucos pormenores. O narrador oferece-nos uma foto em primeiro plano, pois cortou-lhe todo o contexto. Gostaríamos que Lucas nos oferecesse mais dados e informação sobre a futura mãe de Deus, mas o narrador oferece-nos os dados mínimos, mas que são essenciais, procurando ajudar o leitor a compreender a autêntica e profunda identidade desta jovem mulher. Podemos inferir que, segundo S. Lucas, a identidade de uma pessoa, embora esteja condicionada pelos parâmetros biológicos, culturais, sociais, é a dimensão espiritual e transcendente a que tem um papel ‘determinante’ na construção de quem é realmente esse ser. No caso concreto de Maria de Nazaré, segundo o evangelista, é o processo de fé, quer dizer, o dinamismo de acolhimento e de resposta a Deus, aquilo que foi configurando e dando consistência à identidade desta jovem, já que para o autor sagrado o traço principal e caracterizante de Maria é a sua fé ativa e passiva posta de manifesto particularmente na bem-aventurança que recebeu da sua prima Isabel (cfr Lc 1,45), a partir da qual se construiu o primeiro título que a Igreja atribuiu a Maria: a mulher crente.
“Ao sexto mês, o ἄγγελος [mensageiro-emissário de Deus] foi enviado a uma cidade da Galileia chamada Nazaré e entrou onde uma παρθένον [jovem] que estava desposada com um homem chamado José, que era descendente de David; e o nome da virgem era Maria” (vv. 26-27).
Maria é apresentada na história humana com coordenadas cronológicas e geográficas bem precisas. O autor sagrado situa-a num tempo concreto, ‘no sexto mês’ 122 e num espaço determinado, ‘uma cidade da Galileia chamada Nazaré’. Estes não são dados somente informativos, mas teológicos: Deus entrou na história humana, fez-se semelhante a nós, nascendo de uma mulher (cfr Gal 4,4). Maria segundo o dado bíblico não é uma semideusa, uma divindade feminina. Trata-se de uma menina que está na história como nós o estamos agora. O seu mundo é o nosso mundo, é o mundo do leitor. Maria já a partir do ‘vamos’ aprendeu, do mesmo mensageiro de Deus, que para fazer educere, a identidade mais profunda de uma pessoa humana, é necessário entrar na sua história concreta com as suas lutas e vicissitudes. O anúncio que Deus faz a Maria, através do seu mensageiro, sucede de modo pouco habitual para as expectativas religiosas do momento. Para começar, esta revelação de Deus não tem lugar no templo, no santuário, como aconteceu com Zacarias, nem sequer em Jerusalém, a cidade santa (cfr Lc 1, 8-11), nem sequer na região da Judeia, uma região de gente bem-conceituada a nível religioso. Deus acontece numa zona da periferia, semi-pagã, onde habita gente que não é bem vista, que não goza de boa fama porque está em contacto permanente com gente de outro pensar e que adoram outros deuses (cfr Jo 7,41.52). Deus oferece uma boa noticia na Galileia dos gentios, no meio de um povo que caminha nas trevas (cfr Mt 4, 12-16). O mensageiro de Deus não foi enviado a uma grande cidade, a uma metrópole daquele tempo, foi enviado a um povo pequeno de Nazaré, que, antes deste acontecimento, não tinha sido mencionado nem uma só vez nos textos bíblicos (cfr Jo 1, 46).
Estes versículos oferecem-nos ainda dois dados mais sobre esta mulher, trata-se de uma jovem virgem que estava desposada, o seu nome era Maria. A par do seu nome o autor dá conta da situação pessoal e existencial desta pessoa. Os textos bíblicos que utilizamos costumam traduzir o termo grego παρθένον, por Virgem, a que nós costumamos dar uma interpretação restritiva, restringindo o seu significado ao âmbito sexual. Pelo contrario, o autor ao dizer-nos que é uma παρθένον, está-nos a dizer que se trata de uma jovem, uma pessoa que está a viver a passagem da infância para a vida adulta. Já não é uma menina, mas ainda não é mulher, não está casada em sentido estrito, pois não conhece varão; é uma jovem que aguarda o dia do seu casamento, embora já comprometida com alguém com quem não teve relações conjugais. É alguém do sexo feminino que está no início da vida adulta. Segundo a tradição bíblica, o nome de uma pessoa condensa a sua identidade, visto que sintetiza o passado dessa pessoa em ordem a um presente, e anuncia o seu futuro em função de uma determinada missão. O narrador apresenta-a com o seu nome, posteriormente esse nome encher-se-á de sentido ao ser pronunciado pelo mensageiro de Deus (v. 30) que, ao saudá-la pelo seu nome, lhe confere a sua identidade-missão. Não se trata de uma identificação social ou religiosa, trata-se antes da identificação de um tempo oportuno que se abre nela e com ela, pois com a sua livre adesão transforma-se na pessoa chave e protagonista da mudança de época e da novidade messiânica que está em marcha. Alguns artistas, fazendo referência à identidade simbólica de Maria, que reflete e mostra o tempo novo, o tempo messiânico, pintam-na como a nova e autêntica sarça ardente, que arde de zelo pela casa de Deus (cfr Sal 69,9), arde sem se consumir, como o fará o fruto do seu ventre, Jesus (cfr Jn 2, 17).
Nos vv. 28-30, S. Lucas afirma que o mensageiro de Deus entra em diálogo com a criatura humana Maria de Nazaré, saúda-a com a expressão que aos ouvidos da época ressoam às profecias messiânicas realizadas à Filha de Sião 124, convidada à alegria e ao júbilo, porque o Senhor estava a caminho para vir libertá-la dos seus opressores. Com este diálogo do mensageiro com Maria, o autor sagrado não pretende que o leitor fique informado sobre o facto, sobre o modo como isso aconteceu. Pretende que o leitor do Evangelho entre no mistério que está a ser revelado. Uma primeira verdade teológica que descobrimos através deste texto é que Deus concebe cada pessoa humana, representada na figura de Maria, como um interlocutor. Embora sendo Deus, omnipotente e omnisciente, decidiu vir ao encontro de uma jovem inexperiente e insignificante pela sua condição feminina, pela sua idade e pela sua situação geográfica, à qual o autor não atribui, nem sequer, uma casa paterna ou um clã de pertença. Parafraseando, diríamos que Maria no seu tempo era ‘uma Maria zé ninguém’. Muitos de nós, se tivéssemos estado ali, ter-nos-íamos perguntado, quem é esta? De onde é que ela veio? Alguém sabe quem ela é? Que mérito tem ela para ter sido escolhida para ser a mãe do Messias? Para ter sido a favorecida de Deus (κεχαριτωμένη). Que beleza tinha para Deus se deixar encantar por ela e atrair sobre ela o seu favor? Deixemo-nos levar por estas perguntas, a elas iremos respondendo pouco a pouco.
Zacarias é o primeiro a ser interpelado pelo mensageiro de Deus, por sua vez, Maria é apresentada como a primeira jovem que é interpelada e que entra em diálogo com Deus. Ambos são para S. Lucas uma contrafigura teológica. Zacarias, enquanto varão, adulto e sacerdote, segundo a cultura humanística e religiosa daquele tempo, estava mais preparado para compreender e entrar nos mistérios de Deus e, entretanto, não os entendeu, não foi capaz de entrar no mistério, até que se cumpriu o que lhe fora anunciado no templo. Ao passo que a jovenzinha de Nazaré que estava menos preparada, quer pela sua tenra idade, e/ou pela sua condição feminina, para aceder às coisas sagradas, entra em diálogo com o Deus de Israel, e com a sua disponibilidade entra no dinamismo do mistério salvífico. Maria representa o que é frágil, o que é débil na cultura humanista daquele tempo, enquanto Zacarias representa o mais forte, o mais seguro, o menos vulnerável. Mas aquele que tinha tudo para reconhecer e compreender a Deus, fica mudo, ao passo que Maria dialoga, interpela, acolhe e canta as maravilhas que Deus faz. O que é que faz com que um fique mudo e a ‘outra’ cante? O processo de fé, que não consiste no processo de compreensão intelectual da mensagem de Deus, mas na disposição em confiar, em crer que nada é impossível para Deus, (v. 37), é abertura à novidade e ao inédito pois sabe que Ele pode agir quando quer e como quer (cfr Jo 3,8). Zacarias, ao sentir-se tão seguro de como Deus atua, como acontece com tantos adultos e profissionais da fé, pode ter caído na tentação de domesticar Deus e o seu projeto, perdendo a capacidade de reconhecer Deus na novidade e no inédito de uma esposa anciã poder conceber um filho.
Por um lado, temos de dizer que o facto mesmo de dizer que Maria seja humanamente uma “Maria Zé ninguém”, ratifica o incondicional e gratuito do amor de Deus, que não depende do mérito humano. Ele ama-nos e está com o ser humano, porque assim o quer, porque ama com fidelidade e misericórdia, não pelo que lhe damos, mas pelo que somos aos seus olhos: filhas e filhos muito amados. Amor que foi sintetizado no capítulo 2 do livro de Oseias e levado à sua máxima expressão na Cruz de Cristo.
Por outro lado, podemo-nos perguntar porquê ela? Porque não foi outra jovem, porventura a filha de um sacerdote ou sumo sacerdote ou de outra casa paterna relevante ou de outra cidade mais importante? Porquê ela e não outra? Tentando dar resposta a estas perguntas lógicas e humanas, podemos pôr outras como: o que é que atrai o favor de Deus? O que é agrada a Deus? A resposta encontramo-la no livro do profeta Isaías 58, 6b-12, e que posteriormente será condensada no dogma da Imaculada Conceição. Segundo Isaías o modo de proceder que agrada a Deus é o do justo, que liberta os prisioneiros e os encarcerados injustamente, que dá liberdade aos escravos e aos que são maltratados. Aquele que põe fim às injustiças, reparte o pão com os famintos, dá abrigo ao pobre e veste o nu. Segundo o profeta quem assim vive, brilhará como a luz da aurora, as suas feridas serão curadas, a justiça e a proteção de Deus não o abandonarão, o seu corpo terá vigor e o seu jardim florescerá como um prado, o riso e o gozo o acompanharão. Sabemos que Maria foi reconhecida pela Igreja, como a mulher revestida de sol, com a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas na cabeça (Ap 12,1), por conseguinte ela viveu como o justo, que vai apressadamente ter com a sua prima Isabel, que está do lado dos pequenos e dos humildes (cfr Lc 1, 46-55) e que se move com total disponibilidade para fazer o bem e atender às necessidades dos outros (cfr Jo 2, 1-11). Por isso, e muito mais, Maria é imagem exemplar que educa com a sua vida, é imagem acabada daquilo que estamos chamados a ser e exemplo do que podemos chegar a ser. Nela, como numa Mestra, vemos refletida a ‘meta’ do processo educativo e a Mestra que nos indica o caminho: ‘Fazei o que Ele vos disser’ (Jo 2, 5).
A partir do v. 28 fica claro que Deus é quem confere identidade a Maria, numa cena em que a protagonista é Ela e as afirmações são do mensageiro, portanto, do próprio Deus. O que diz o mensageiro, di-lo Deus, e se é Deus quem o diz, merece a máxima confiança. Por conseguinte, tudo o que digam os outros sobre Maria, só tem valor se estiver relacionado com o que Deus diz sobre ela. Isto explica a confusão da jovem perante a saudação do mensageiro, pois toma consciência de quem é aquele que fala e, portanto, da originalidade e da densidade da saudação que está a receber. Este versículo oferece-nos outra chave de leitura quando se trata de aprender a ser educadores à maneira de Maria, visto que Ela aprendeu do mesmo mensageiro, que no processo educativo o protagonista é Deus, é o seu Espírito. As outras palavras como as do educador salesiano só têm valor se estiverem em função daquilo que Deus quer fazer com essa pessoa, só têm sentido se estiverem em consonância e em função com o que Deus disse. Nenhum educador pode pretender ser o protagonista do processo educativo, mas tão só uma simples mediação do Espírito do Ressuscitado. Para isso será preciso ‘guardar no próprio coração’ como o fez Maria (cfr Lc 2,19) tantas coisas que acontecem na sua vida e na vida dos seus educandos até que o Senhor lhe permita ver o caminho que deve seguir. Enquanto isso, está chamado a permanecer na Palavra e na busca do Senhor, como a esposa do Cântico dos Cânticos.
Nos vv. 31-35, o mensageiro de Deus anuncia a Maria a missão que estava concentrada no seu nome: conceberás, darás à luz e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Ela dialoga com o mensageiro, pergunta como tudo isso irá acontecer, mostrando a sua incapacidade, eu não conheço varão (v. 34). Não duvida que Deus o possa fazer, só pergunta como será isso, visto que nela não se dão as condições humanas para que possa vir a acontecer o que que lhe é anunciado. Sendo Maria reconhecida pela Igreja como figura correlativa a Abraão, visto que dele foi dito: “Acreditou contra toda a esperança”, e dela se disse: “Feliz de ti porque acreditaste”; contemplando-anos testemunhos bíblicos, descobrimo-la como uma jovem decidida, que se interroga interiormente sobre o sentido da saudação, e interpela Deus através das suas mediações, acerca de como se realizará aquilo que lhe anuncia e promete. Nela a Igreja contempla o dinamismo crente de uma jovem que põe todas as suas energias humanas a fim de compreender e fazer seu aquilo que Deus lhe vai propondo na história concreta, num contínuo exercício de leitura crente dos acontecimentos, sejam eles pequenos ou grandes. No v. 35, S. Lucas evidencia que o Espírito Santo, simbolizado na imagem da sombra que a acompanha, e da presença de Deus que está nela, faz de Maria a sua morada permanente, habita no seu ser como num templo. Foi essa presença que estimulou no seu ventre todos os processos biológicos necessários para poder realizar a sua missão: conceber, dar à luz e pôr o nome ao Filho de Deus. Esta ação do Espírito Santo na jovem de Nazaré foi possível através do seu consentimento, como ato único e pessoal da sua liberdade humana. Maria sem compreender de todo, como o atestam os textos bíblicos, colaborou com a atividade do Espírito Santo colocando toda a sua existência ao serviço da pessoa divina. Como jovem ativa e comprometida com a realidade do seu povo e do seu Deus, Maria no exercício de uma liberdade responsável, ofereceu o seu corpo e a sua sensibilidade feminina em forma de cooperação humana com o projeto de Deus. Podemos dizer que ela deu com a sua vida o que os discípulos disseram com a sua voz, depois da experiência pascal, “não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te tudo o que tenho: em nome de Jesus de Nazaré, anda!” (At 3,6). Maria permanece na Igreja como modelo perfeito da pessoa ‘sábia’. Depois de pronunciar o seu ‘fiat’ através da fé e de ter acolhido primeiro no seu coração e depois na sua carne o Filho de Deus, iniciou um processo educativo que a capacitou para acompanhar o seu filho até à Cruz e a todos aqueles que na cruz de Cristo irão integrar a família de Deus 125.
Nos vv. 36-37 o autor sagrado oferece dois dados, um histórico: “também a tua prima Isabel”, e outro teológico: “a Deus nada é impossível”, com os quais põe em evidência a imersão de Maria na fé de Israel. Esta última, é uma frase muito relevante na história salvífica de Israel, já que, esta frase é a que o mensageiro de Deus disse a Sara em Gn 18, 14. Com esta afirmação, não somente lhe está a dizer que nada é difícil para Deus, está-lhe a indicar um caminho: coloca-te na linha do teu povo. Coloca-te na fé de Abraão, na fé pela qual transitaram os teus pais. Estamos acostumados a ler apressadamente e interpretar que como Deus é todo poderoso vai fazer nascer um filho de uma jovem que não teve relação sexual com nenhum homem, mas o texto transmite uma verdade mais profunda que não excluí esta última. É um convite a entrar no dinamismo dos seus patriarcas, na origem do seu povo que teve início com; a Deus nada é impossível (cfr Gn 18, 14), que deu à luz um filho ao qual foi posto o nome de Isaac, que significa: Deus fez-me sorrir.
A resposta que Maria dá ao emissário de Deus no v. 38, Eis a serva do Senhor, aparentemente é contraditória ao modo como o anjo a trata, já que ele se dirige à jovem de Nazaré com o trato digno de uma grande Senhora: Ave! Na atualidade diríamos que foi um trato digno da rainha mãe, visto que para o mundo judaico a saudação que o mensageiro lhe dirigiu é a saudação que se dirige à Gebira 126 que, por sua vez, é correlativo ao modo como a sua parenta Isabel se dirige a Maria: “De onde me é dado que venha ter comigo mãe do meu Senhor?” (v. 43).
A relevância de Maria está dada pelo acolhimento da Palavra de Deus, que foi recebida a tal ponto que no seu seio se fez carne, como filho seu e Filho de Deus. A resposta de Maria é de adesão à identidade que o mensageiro lhe indicou como missão. A sua disponibilidade a Deus, nada tem a ver com a submissão de escrava, mas com a adesão livre e amorosa ao querer do Deus do seu povo. É uma resposta dada não a partir das forças pessoais, mas a partir da confiança naquele que lhe deu este dom vocacional, esta identidade: de mãe do Senhor. Para a teóloga espanhola M. Navarro o sim da jovem de Nazaré foi possível porque entre Deus e Maria existe uma fala comum: ambos dizem o mesmo porquanto têm o mesmo desejo profundo. Deus, desde a sua eternidade; Maria, no tempo. Para a autora, o facto de que Deus e Maria tenham o mesmo desejo significa que têm o mesmo Espírito, cuja origem e identidade é divina, mas que habita no tu de Maria e torna possível que ambos pronunciassem a mesma Palavra: o Filho na história, pois ambos geraram, um na humanidade e o Outro na divindade 127.
O teólogo De Lubac afirma que os textos acerca da busca do Esposo contida no Cântico dos Cânticos, adapta-se melhor a Maria, justamente porque nela se realiza a perfeição da busca e do desejo. Maria é o modelo da Igreja jovem que busca e contempla Deus em tudo quanto faz e diz, tal como uma jovem apaixonada cheia de vitalidade busca o seu amado 128. Por isso, o educador salesiano, é uma pessoa que está em constante busca de Deus e da sua vontade, por isso como homem e mulher sábia é capaz de sintonizar com o Espírito e perceber os seus sinais na história. Como Maria que prevê; vê antes, intui a presença e a vontade de Deus; antes de saber e compreender, é capaz de pre-sentir, sentir antes que os sentidos naturais o percebam. No amor, Maria ‘sabe’ antes de compreender; o seu olhar materno olha e vê aquilo que é invisível aos olhos dos outros. É a vivência da sua capacidade feminina potenciada pelo Ruah de Deus, que a torna capaz de intuir, antecipar e prever o Reino que Deus quer instaurar mediante o seu ‘sim’. Sem saber de todo como será possível, atua dando o seu consentimento. É assim que a apresenta o evangelista S. João no relato das Bodas de Caná, como a mulher que pre-vê a hora do Filho 129. Acolhendo o Espírito Santo, Maria realiza em si mesma a esperança teologal, na forma mais plena e densa. Torna-se terreno da realização da promessa divina, lugar no qual e através do qual, o amanhã da Graça vem implantar a sua tenda, fazendo dela a arca da Nova Aliança. A pedagogia salesiana é a pedagogia do coração, pois brota de um coração apaixonado por Deus e que sintoniza com aquilo mesmo que habita no coração do jovem a quem se dirige. A pedagogia salesiana é semelhante às entranhas de mãe, que se move e comove até que todos os seus filhos estejam sãos e salvos na casa do Pai. O educador, qual mãe pressurosa, não aprisiona os seus filhos junto de si, deixa que sejam livres e ajuda-os a exercitar a vontade para que, no uso sadio da sua liberdade, conheçam e empreendam o desafiante e apaixonante caminho para a casa paterna.
O ‘sim’ de Maria, tornado absolutamente pessoal e criatural, que deu início ao processo biológico pelo qual Deus se fez homem, deu-se em virtude da presença do Espírito Santo que alguns autores assinalam como o desejo em sentido próprio, o desejo com maiúscula, que habitando em Maria realizou a unidade entre o Pai Criador e a jovem de Nazaré, para a tornar a Theotókos, a Mãe de Deus. O Espírito, por vontade do Pai, na Conceição Imaculada de Maria antecipou sobre ela os efeitos da graça redentora de Cristo, imprimindo nela um desejo de transcendência, que a torna capax Dei, capaz de reconhecer a Deus no inédito e responder à sua vontade salvífica e auto comunicativa, do mesmo modo como são capacitados todos os que depois da Páscoa de Cristo se abriram ao seu Espírito 130. Esta presença do Espírito Santo em Maria, desde o início da sua existência, não tornou a sua resposta um ato menos ‘pessoal’ e livre; como se tivesse sido ‘manipulado’ por Deus; antes pelo contrario, é Deus quem volta a colocar as premissas necessárias, ontologicamente falando, para que a liberdade dos seres humanos exista e possa entrar no jogo dialógico da graça 131.
O Deus que se autorrevela e entra em diálogo com Maria não tem nada a ver com uma ‘divindade’ que procura a passividade da criatura, mas que é um Deus, Uno e Trino que cria as possibilidades para que se dê um autêntico diálogo salvífico entre Criador e criatura, que permite a esta última ir mais além do determinismo factual da história encerrada em si mesma. Trata-se do Deus que se revela na história, criando um ser espiritual e pessoal dotado da potência oboedientialis, quer dizer, com a capacidade de receber o que Deus nos quer comunicar 132. Deus abre a história, condensada na jovem Maria de Nazaré, para horizontes insondáveis para o ser humano; realiza-o habitando nela (cfr. v. 35), de tal modo que somente é factível ao omnipotente e Criador. Inabitação que permite a Maria ser em plenitude o que é, uma jovem mulher, e responder como tal; por sua vez, permite a Deus continuar a ser Deus, o todo Santo. O princípio antropológico, Gegen-satz, ‘somente um eu pode ser um tu para o outro’ permanece em constante tensão com o outro princípio, Grundsatz, ‘o eu graças ao outro’ 133. Somente quem ‘sabe’ quem é, está em condições de reconhecer o outro e abrir-se para acolhê-lo; mais ainda, somente quem se possui a si mesmo é capaz de dar-se, de colocar-se totalmente nas mãos do outro sem deixar de ser o que é, sem perder a sua identidade e autonomia, e ser capaz de autodeterminar-se em função do bem do outro. Deus é o único que se possui a si mesmo em plenitude, e pode autodeterminar-se em função da salvação do ser humano, sem deixar de ser Deus 134. Portanto, concluo que é por participação naquilo que é próprio de Deus que Maria se torna a jovem mulher que se autodefine 135, pois reconhece, eu diria ‘intui’ a sua identidade mais profunda, e a partir do possuir-se a si mesma reconhece totalmente o Outro, presente nela e na sua história. Acolhe-O com a sua liberdade juvenil e feminina, tornando possível que Espírito do Pai e do Filho, tornasse ‘Santo’ o fruto do seu ventre (cfr Lc 1,35). E é precisamente a participação nesse mesmo dom do Espírito Santo que a jovem de Nazaré é capaz de auto possuir-se e autodeterminar-se em função de Deus e do seu povo, pronunciando o “sim” humano que ativou o processo biológico e teândrico da Encarnação do Filho de Deus.
O “sim” de Maria foi uma concretização do ato fundamental do seu ser, uma consagração realizada pelo Espírito Santo que permaneceu intrinsecamente unida à sua livre autodeterminação. O seu não compreender de todo o que estava a acontecer ou por acontecer, não excluiu que a sua experiência não refletida e transcendente de Deus e de si mesma fosse toda orientada para a sua ‘singularíssima’ relação com o Filho de Deus, e a partir d’Ele com toda a Trindade. Basta recordar a sua pergunta cheia de espanto: Como será isso? E a sua resposta crente: Faça-se em mim segundo a vossa palavra (cfr Lc 1, 34.38).
Em síntese: Maria é o modelo que todo o ser humano e particularmente os jovens, precisam de ter diante de si, não para copiá-lo, mas para inspirar-se no seu modo de viver, contemplando nela aquilo a que um ser humano pode chegar quando decide entrar no dinamismo de Deus. Enquanto não se viver por uma causa, não se pode entender o que significa a presença viva e ativa de Maria na vida de tantos santos, especialmente de Dom Bosco e de M. Mazzarello. Maria não é um quadro na parede do quarto ou uma imagem na Igreja, mas uma presença viva, que ampara os que ‘sofrem’ pelas causas da justiça, da paz e da procura de uma vida melhor para todos. Maria tem que ser vista e apresentada como jovem mulher, livre e responsável pelos próprios atos: o seu “sim” e a sua colaboração na história da salvação é o grande sinal de liberdade e responsabilidade que brilha no tempo; sinal eloquente para todos os que sonham um mundo mais humano, mais de Deus e do seu Reino. Maria não é somente uma expressão concreta da proximidade de Deus na labuta pela vida, mas também modelo e concretude de alguns valores decisivos para todos os crentes, particularmente para os jovens de ontem e de hoje. O mundo precisa de jovens e educadores contemplativos, segundo o estilo de Maria, capazes de interrogar-se e meditar sobre a direção para onde caminha a humanidade, onde está e o que nos está a querer dizer Deus nos acontecimentos deste tempo; jovens e educadores capazes de comprometer todas as suas potencialidades na busca e na construção do bem comum e da amizade social (cfr FT n.º 2), um mundo sustentável que inclui e não excluí os mais débeis do sistema. Jovens comprometidos na luta contra o mal e as suas manifestações; audazes e generosos que não têm medo da cruz, porque sabem que Deus é maior e mais forte do que a morte.