“O discernimento vocacional não se realiza num ato pontual…; é um longo processo, que se desenvolve no tempo, durante o qual é necessário manter a atenção nas indicações com as quais o Senhor precisa e especifica uma vocação que é exclusivamente pessoal e irrepetível… a própria Virgem Maria progride na consciência da sua vocação através da meditação das palavras que escutava e na sucessão dos acontecimentos, até daqueles que ela não compreendia (cf. Lc 2,50-51)”. 63
Lucas deixou-nos um retrato da mãe de Jesus, que descreve de modo paradigmático, que não é possível manter a fé em Deus e a fidelidade ao seu projeto sem manter-se atento a quanto sucede, num discernimento contínuo. Antes de ser chamada a tornar-se mãe do filho de Deus (Lc 1,26-38), o mesmo que deu à luz em Belém (Lc 2,1-20), apresentou-o aos quarenta dias no templo (Lc 2,22-40) ou se perdeu, já como adolescente, em Jerusalém (Lc 2,41-52), Maria manteve-se atenta a tudo quanto Deus lhe ia pedindo, sem o passar por alto por não o entender (cf. Lc 1,29; 2,19.33.48.50-51).
O facto de ter-se posto ao serviço do projeto salvífico de Deus obrigou-a a percorrer um caminho de fé, no qual, à medida em que nele progredia, se tornavam menos óbvias e imediatas e muito mais exigentes e dolorosas, as decisões de Deus. Chegou a ser sua mãe depois de perguntar-se o que é que significava aquilo que estava a escutar (Lc 1,29) e a aceitá-lo (Lc 1,38). Teve de tornar-se contemplativa para poder continuar a ser serva e mãe (Lc 2,19.33.51).
Para realizar o seu projeto de salvação Deus precisa de crentes que deem acolhimento à sua Palavra e entranhas ao seu Filho. Foi isso o que revelou a Maria, comunicando-lhe o seu desejo de dar um salvador ao povo propondo-lhe torná-la mãe sem deixar de ser virgem. Aquilo que Maria ainda não sabia – e o teve de ir aprendendo ao longo de toda a sua vida – foi que, uma vez feita serva de Deus e gerando um filho nas suas entranhas, jamais se livraria de ambos. Nem quando deu à luz o filho de Deus em Belém (Lc 2,19), nem quando o seu primogénito se vai tornando gradualmente um homem (Lc 2,40.52). O ter aceite o projeto de Deus obrigou Maria a viver em contínuo discernimento, «conservando todas estas coisas no seu coração» (Lc 2,51).
“Na sua ‘pequenez’, a virgem esposa prometida a José, experimenta a debilidade e a dificuldade em compreender a misteriosa vontade de Deus (cf. Lc 1,34). Também ela está chamada a viver o êxodo de si mesma e dos seus projetos, aprendendo a entregar-se e a confiar… Consciente de que Deus está com ela, Maria abre o seu coração ao «Eis-me aqui», inaugurando deste modo o caminho do Evangelho (cf. Lc 1,38)”. 64
É um erro – bastante comum, por certo – considerar a maternidade divina como o cume da experiência que Maria fez de Deus. Nazaré não foi a meta do caminho mariano de fé (cf. At 1, 14) mas o seu ponto de partida (Lc 1,26). Quando Gabriel, emissário pessoal de Deus, confiou a Maria o seu plano de salvação, a virgem de Nazaré encontrava-se imersa na vida quotidiana de uma humilde aldeia rural (cf. Jo 1,46) 65, já comprometida noutro projeto, «desposada com um homem chamado José» (Lc 1,26; cf. 2,5; Mt 1,23; Dt 22,23) 66. Soube que Deus pensava salvar o seu povo no mesmo momento em que conheceu que Deus estava a contar com ela para fazê-la mãe do seu Filho.
O anúncio do nascimento de Jesus coincidiu, pois, com o convite para ser mãe de Deus. A salvação do povo, projetada por Deus, entrava em concorrência com a vocação de Maria, escolhida por Deus. Que a Deus não lhe importasse o obstáculo da sua atual virgindade nem o seu compromisso matrimonial já assumido, livrou-a de escusas nas quais apoiar a sua resistência. E a ignorância sobre como seria possível essa anunciada maternidade tornou cega a sua obediência à omnipotência divina (Lc 1,34-37). A bem-aventurança de Maria não consistiu em conseguir ser mãe de Deus, mas em ter confiado n’Ele (cf. Lc 1,45; 11,27-28) 67. Todo aquele que crê totalmente em Deus, cria-O, gerando-O, de modo admirável (Lc 1,38).
O relato da anunciação apresenta uma estrutura formal clara. À apresentação das personagens (Lc 1,26-27) segue-se a aparição do anjo e da sua saudação (Lc 1,28-29); Maria reage interrogando-se e o anjo dá-lhe a conhecer o projeto divino (Lc 1,30-34); uma nova pergunta de Maria motiva o esclarecimento do anjo e este, o assentimento em Maria (Lc 1,35-38a). A entrada em cena do anjo (Lc 1,26a) e a sua saída (Lc 1,38b) encerram um episódio em que o enviado de Deus teve sempre a iniciativa e Maria reagiu em contínua progressão, refletindo em silêncio (Lc 1,29), inquirindo abertamente (Lc 1,34) e terminando com o mais completo assentimento (Lc 1,38).
26 No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria.
28 Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe:
«Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo.»
29 Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação.
30 Disse-lhe o anjo:
«Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus.
31 Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. 32 Será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David, 33 reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim.»
34 Maria disse ao anjo:
«Como será isso, se eu não conheço homem?»
35 O anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus. 36 Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, 37 porque nada é impossível a Deus.»
38 Maria disse, então:
«Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.»
E o anjo retirou-se de junto dela.
Por três vezes o enviado desvenda a Maria o plano divino (Lc 1,26.30-33.35-38) e outras tantas ela reage, interrogando-se, perguntando e aceitando (Lc 1,29.34.38) 68. À ulterior explicação da proposta por parte de Gabriel (Lc 1,35-37) corresponde Maria com uma mais completa aceitação da demanda (Lc 1,39).
«Ela perturbou-se com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação» (Lc 1,29).
Gabriel (cf. Lc 1,19) 69 abre o diálogo vocacional com Maria com um «alegra-te», ó cheia de graça» (Lc 1,28), que mais do que saudação (cf. Mt 26,49; 27,29; 28,9) é um convite a estar alegre (cf. Lc 1,14; 2,10) 70, por uma salvação que se anuncia (cf. Is 12,6; Sof 3,14-15; Ex 3,14-17; 9,9). Antes de lhe ser anunciado um filho e a salvação do povo, impõe-se-lhe a feliz notícia. A razão está no ter encontrado graça diante de Deus. «Cheia de graça» é a parte da saudação angélica mais surpreendente e promissora. A felicidade da agraciada é o sentimento apropriado por parte de quem vai conhecer que foi escolhida por um Deus que está com ela antes – e para que – Ele esteja nela. «O Senhor está contigo», que pode ser uma simples saudação (Rut 2,4), expressa aqui a assistência ativa de Deus a pessoas que vão a atuar em seu nome; é-lhes assegurada a proteção divina, no desempenho da missão que lhes vai ser confiada (cf. Ex 3,12; Jz 6,12.15-17) 71.
A saudação do anjo é tão insólita como a missão que em seguida vai indicar. Antes de revelar a Maria aquilo que Deus quer dela deu-lhe a entender o quanto Ele a quer: antes de lhe confiar a missão, revela-lhe a escolha. Gabriel fala da graça de Deus que a enche, não dos méritos de Maria 72; descobre deste modo um comportamento surpreendente, paradoxal até, de um Deus, cuja benevolência choca as expectativas dos seus fieis.
As palavras, que não a visão, do anjo, (cf. Lc 1,12), perturbam Maria (Lc 1,29); não entende o motivo de tão grande louvor. A sua reação é complexa, emotiva («ficou muito perturbada») e racional («perguntava-se») ao mesmo tempo; fica intranquila, mas pondera. A benevolência divina, inesperada, dá-lhe para pensar. Um Deus tão gratificante deixa-a perplexa: ao estranhar aquio que se lhe está a pedir – e essa é a graça que Deus lhe fez – Maria começou a preocupar-se (cf. Gn 15,1; 26,24; 28,30; Jer 1,8). 73
A sua reação, sem paralelo nos relatos de anunciação (cf. Jz 6,13), põe em evidência a maturidade da sua fé. Dá-se ao cuidado de procurar o sentido daquilo que está a escutar, afronta a nova situação com maior reflexão, considera as circunstâncias à procura de uma conclusão (cf. Lc 3,15). Não há nela angústia, aflição ou incredulidade. Não entende bem o que se lhe está a pedir; aceita-o com seriedade. Muito assombro e desejo de compreender marcam o início do discernimento vocacional.
«Como será isso, se eu não conheço homem»? (Lc 1,34).
À sua deliberação, o anjo responde revelando-lhe o que Deus espera (Lc 1,30-33). Deus está a iniciar um diálogo com Maria que ela não tinha pedido; nem sequer o podia ter imaginado. Antes de conhecer o que Deus dispõe, Maria sabe que conta com a sua benevolência: «encontraste graça diante de Deus» (Gn,30; cf. Gn 6,8; 19,16; Ex 33,12). Pode, pois, contar com Deus, sem saber ainda para quê conta Deus com ela. A graça dada precede a missão a realizar: conceber, dar à luz e dar o nome ao filho de Deus.
A mensagem angélica centra-se no filho que vai nascer de Maria. Deus já o tinha pensado antes que a virgem pudesse conceber; mas não “exige dela nada que vá contra a sua consciência” 74. Maria reage sobriamente, sem entusiasmo nem dúvidas. Não pede provas nem indaga sobre a possibilidade (cf. Lc 1,18); pergunta-se sobre o modo em que se vai realizar a conceção no seu estado atual: «como será isso, se eu não conheço homem?» (Lc 1,34; cf. Gn 4,1.25) 75. Permanecendo virgem, não crê que seja viável a proposta de ser mãe. Se se realizar será puro dom. Toma a sério o anúncio, tanto como para questionar o modo de realização.
Com a sua pergunta, pois, Maria não questiona a mensagem recebida, nem rejeita a missão indicada; porque assume isso, interroga-se. Pensa, e expressa-o, perguntando, que não a pode levar a cabo. A sua impotência confessada torna-a “capaz” de acolher Deus. A maternidade será, pois, pura graça: o Espírito, poder criador de Deus, encarregar-se-á de a tornar realidade: “o filho de Maria é gerado pelo próprio Deus… Jesus continua a ser, desde logo, o filho de Maria, quer dizer, um ser humano” 76.
«Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra» (Lc 1,38)
Contudo, continua a perguntar para melhor discernir; e perguntando, torna necessária uma ulteriora explicação. Mesmo no meio da revelação, Maria continua discernindo, pois não consegue compreender a mensagem angélica, que se centrou em definir a personalidade do menino (Lc 1,32) e em descrever a sua missão futura (Lc 1,33).
Gabriel, indo mais além do requerido, esclarece o modo da conceção do filho prometido a Maria, declarando-O filho do Altíssimo (Lc 1,35). Confirma, além disso, o caráter extraordinário do nascimento, dando como confirmação a maternidade de Isabel (Lc 1,36), que exemplifica o poder omnímodo de Deus (Gn,37; 18,27; cf. Gn 18,14; Jer 32,27; Zac 8,6). A pergunta de Maria, que não pedira sinal algum, não pedia apoio para crer na mensagem. Deus não lhe pede fé cega. E o anjo concede um sinal que ratifica a mensagem: proclama o estado de boa esperança de Isabel.
Próximas também pela sua incapacidade para a procriação 77, a maternidade de Isabel prova, agora que é visível, a possibilidade da conceção virginal, mas mais nada. Para que se realize, não basta a omnipotência de Deus. É preciso o consentimento da sua serva; é a ela que corresponde a última palavra. Se acreditada, a palavra de Deus torna-se criadora.
A fórmula com a qual Maria dá o assentimento, («eis a serva do Senhor», cf. Gn 30,34; Js 2,21; Jz 11,10; Dan 14,9) revela a sua total aceitação. Passa de depender do homem da sua vida para estar ao serviço de Deus, que nela se faz homem. O seu «faça-se» é um optativo, que expressa um intenso desejo. A virgem dá o seu assentimento a tudo quanto ouviu e deixa que Deus, fazendo o seu querer, seja o seu Senhor. O projeto divino verifica-se no momento em que obtém o consentimento do seu escolhido. De facto, aos poucos, virá a ser proclamada publicamente «a mãe do meu Senhor» (Lc 1, 43).
Contudo, e há que realçá-lo, o relato não encerra mencionando a conceção do filho. Termina declarando a disponibilidade de uma virgem para ser mãe. É aquilo com que o Deus omnipotente ainda não contava. Logo que obteve o seu consentimento, iniciou o seu plano. Jesus não foi, como qualquer outro homem, fruto de um encontro de amor humano, mas da confiança de Deus numa virgem (Lc 1, 30-31) e a obediência de uma serva ao seu Deus (Lc 1,38).
Na crónica da vocação de Maria Deus revela-nos como Ele é. Recorda não tanto o que tinha feito em Maria 78 quando Deus a chamou ao seu serviço. Deixa ver, mais exatamente, o que Ele estaria disposto a fazer por nós, caso encontrasse em nós a mesma disponibilidade de Maria. Deus deixou ao alcance dos seus servos o poder de concebê-lo. E convida aqueles que Ele quer a que arrisquem e o tentem. Repassando a vocação de Maria, poderíamos sentir-nos convidados, por esse mesmo Deus, a dar-lhe uma mão, facilitando-lhe de novo a sua entrada no mundo. Ou será que o nosso mundo não necessita de Deus? Maria consegui-o ouvindo a Deus sem O ter entendido completamente, mas não desistindo de O compreender.
O anúncio do nascimento de Jesus coincidiu com o convite para ser mãe de Deus. O relato descobre, por isso, os traços essenciais de toda a vocação cristã. Revela que Deus, quando propõe a alguém uma missão especial, na realidade, está a programar a salvação do seu povo. Tendo um projeto de salvação, confia-o a quem Ele entender. Como a de Maria, toda a vocação é, basicamente, um diálogo no qual Deus se revela, declarando o seu projeto e dando-o a conhecer à pessoa que conta com ele. Tudo quanto o anjo diz a Maria, mais do que maravilhosas afirmações acerca da sua pessoa, manifesta a decisão que Deus tomou para salvar o seu povo.
No que diz respeito a Maria, como qualquer outra autêntica vocação, começou e realizou-se dialogando 79. E culmina quando – e se –, termina obedecendo. Não foi Maria que iniciou o diálogo; mas tão pouco o rejeitou. Reagindo sempre às palavras de Gabriel, primeiro, interrogou-se perturbada (Lc 1,29); depois, confessou a sua incapacidade em assumir a proposta (Lc 1,34); para terminar, declarando-se estar ao serviço de um Deus que tudo pode (Lc 1,37-38). No coração mesmo do seu diálogo vocacional Maria caminhou desde o assombro sem palavras até à aceitação sem reservas, passando pelo reconhecimento da sua própria incapacidade. Sem escuta atenta e discernimento contínuo, a virgem não teria chegado a ser mãe…, nem Deus a ter o filho planeado.
Antes de se saber chamada por Deus, Maria sente-se agraciada. Antes de ter optado por Deus, teve de aceitar que Deus tinha optado por ela. Deus chama-nos porque nos ama ou chama-nos para O amarmos? Se a graça precede a missão, não será verdade que toda a vocação autêntica reconhece que o querer divino precede as suas exigências? É legítimo, pois, o temor? (Lc 1,30). De onde é que proveem e se alimentam os nossos temores na nossa vivência vocacional? Qual a razão por que não nos entusiasmamos com o facto de que Deus tenha contado connosco e que nós contemos tanto para Ele? Quem tem a consciência de ter sido chamado, sente-se agraciado por Ele; como Maria, encontrar a própria vocação é ter encontrado a graça de Deus (cf. Lc 1,30).
Deus não nos chama para ninharias. A Maria, chamou-a para o impossível: ser mãe, permanecendo virgem, e dar à luz o seu primogénito que era, na realidade, o Unigénito de Deus. O que é que deveria admirar-se mais: a necessidade de Deus em encontrar uma pessoa que se fiasse d’Ele, ou a aceitação imediata por parte de Maria para realizar o plano de Deus?
Deus propôs a Maria uma maternidade, que estava fora dos seus planos, uma vez que já estava comprometida (Lc 1,27), nem isso estava entre as suas possibilidades, pois ainda era virgem (Lc 1,34). O filho que lhe foi anunciado não iria ser, na realidade, seu («filho de Deus Altíssimo»: Lc 1,32.35.76) nem para ela («Messias de Israel»: Lc 1,32-33). O primeiro a estranhar os planos de Deus é aquele que primeiro os escuta. Pode alguém que é chamado a viver a sua vocação sem que Deus o estranhe, sem que lhe chame minimamente à atenção? Um Deus que não estranha é um Deus que não deu a conhecer o seu desígnio salvífico.
Tendo aceite o seu desígnio e já presente Deus no seio de Maria, o mensageiro sai da sua presença (Lc 1,28). Quando Deus encontra servos, sobram-lhe os enviados. Quando o projeto divino encontra acolhimento, acontece o impossível: a virgem começa a ser mãe do seu Senhor 80. A razão da bem-aventurança mariana (Lc 1,45) não está, pois, na maternidade divina, mas na sua capacidade de acolher a Deus: não é proeza dá-lo à luz, mas assumir o seu incompreensível querer. Ainda que lhe tenha sido dado um sinal (Lc 1,36-37), Maria era “uma mulher de fé para quem basta a palavra de Deus” 81. Para fazer-se com Deus, é preciso acolhê-Lo: fé, que é obediência de serva, é a forma de tornar própria a vocação à qual fomos chamados. E é nisso que radica a felicidade (cf. Lc 1,45).
Tal como nos dias de Maria, Deus continua a procurar quem lhe preste fé e lhe abra o seu coração. O Deus de Maria não tem outro modo de salvar o mundo do que se incarnando. Ontem como hoje. O crente, como Maria, não necessita para conceber a Deus senão da sua fé. Para dar-lhe carne e habitação, tornando-o humano, dá-lo à luz e dá-lo ao mundo, não é preciso milagre maior do que uma obediência própria de servos. Somente pondo-nos totalmente ao seu serviço, faremos dele nosso familiar: com o Deus de Maria, o servo é o amo; o criado, o senhor; a escrava, a mãe.
“Cada jovem pode descobrir na vida de Maria o estilo da escuta, a coragem da fé, a profundidade do discernimento e a dedicação para o serviço (cf. Lc 1,39-45) […]. Nos seus olhos cada jovem pode redescobrir a beleza do discernimento, em seu coração pode experimentar a ternura da intimidade e a coragem do testemunho e da missão” 82.
A presença e o protagonismo de Maria são mais evidentes em Lc 2 do que em Lc 1. Os factos que se recordam, centrados na infância e na adolescência de Jesus, silenciam por completo João Batista e os seus pais, centrados como estão na família de Jesus. E são menos prodigiosos; agora anota-se com precisão e repetidas vezes, que a vida da família do filho de Deus fica sujeita à lei, quer a dos homens (Lc 2,1-5), quer a de Deus (Lc 2,22-24.39.41-42). A salvação de Deus entra em cheio na história mundial. Nascimento, infância e adolescência de Jesus assinalam os marcos de um caminho de discernimento, que Maria teve de percorrer para manter-se crente. Deus vai-lhe dizendo o que espera dela de modo cada vez mais ténue e indireto, mas cada vez mais exigente.
A relação de Maria com Deus, iniciada logo a seguir à aceitação da sua vocação, não acabaria, como seria de esperar, dando à luz o filho de Deus. Uma vez dado o seu consentimento – e o próprio corpo – uma só vez – a serva de Deus nunca mais se verá livre do seu Senhor. Maria, que manifestara a sua disposição somente para gerar o filho de Deus, irá descobrindo pouco a pouco, e sem muitas luzes, novas tarefas e maiores penas.
Lucas narra o nascimento de Jesus com “uma concisão, simplicidade e sobriedade, que está em sensível contraste com o significado do facto” 83 (Lc 2,4-7). O contraste torna-se mais evidente: em Belém (cf. Mt 2,1-6) não há vizinhos e parentes por perto que se alegrem com a sua mãe (cf. Lc 1,58) e na cidade de David (Mq 5,1) não há lugar para um recém-nascido, apesar de ser proclamado como «o Salvador, o Messias, o Senhor» (Lc 2,11). Mais do que no facto mesmo, o narrador centra-se nas circunstancias que o rodearam, quer no censo imperial que motiva a viagem a Belém (Lc 2,1-3) 84, quer na presença dos pastores que estavam de vela essa noite (Lc 2,8-20). Não pode ser mais clara a disparidade entre o triunfal anúncio dos anjos (Lc 2,9-14) e as circunstâncias do nascimento (Lc 2,6-7). Para o narrador, é decisivo que “Maria teve uma verdadeira gravidez e Jesus, um verdadeiro nascimento” 85.
A estrutura do relato é simples. Ao nascimento em Belém (Lc 2,1-7; cf. Mt 2,1) segue-se a proclamação angélica aos pastores (Lc 2,8-14), os quais constatam o sucedido e testemunham o seu alcance (Lc 2,15-20). O sinal que lhes é dado enlaça as três cenas (Lc 2,7.12.16: um recém-nascido, «envolto em panos e deitado num presépio»). No centro do relato está a mensagem angélica dirigida aos pastores (Lc 2,10-12), o terceiro dentro do relato lucano da infância de Jesus (cf. Lc 1,11-20.28-37). Que o recém-nascido, deitado num presépio, seja identificado como «o Salvador, o Messias, o Senhor» (Lc 2,11), ultrapassa todo o imaginável 86.
1 Naqueles dias foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se. 2 Este, o primeiro recenseamento, foi feito quando Quirino era governador da Síria. 3 Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. 4 José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, para a Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser ele da casa e família de David, 5 a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.
6 Estando eles ali, aconteceu completarem-se-lhes os dias, 7 e ela deu à luz o seu filho primogénito, enfaixou-o e deitou-o numa manjedoura porque não havia lugar para eles na hospedaria.8 Havia naquela mesma região pastores que viviam nos campos e guardavam o seu rebanho durante a vigília da noite. 9 E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande temor. 10 O anjo, porém, disse-lhes: “Não temais: eis que vos trago a boa nova de grande alegria, que o será para todo o povo:
11 é que hoje vos nasceu, na cidade de David, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. 12 E isto vos servirá de sinal: encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada numa manjedoura. 13 E subitamente apareceu com o anjo uma multidão do exército celeste louvando a Deus e dizendo:
14 Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens, por Ele amados. 15 E, afastando-se deles os anjos para o céu, diziam os pastores uns aos outros: Vamos até Belém e vejamos os acontecimentos que o Senhor nos deu a conhecer.
16 Foram apressadamente e acharam Maria e José, e o menino deitado na manjedoura. 17 E, vendo-o, divulgaram o que se lhes havia dito a respeito deste menino. 18 Todos os que ouviram se admiraram das coisas referidas pelos pastores. 19 Maria, porém, guardava todas estas palavras, meditando-as no coração. 20 Voltaram então os pastores glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes fora anunciado.
O cronista mal se detém narrando o nascimento de Jesus. Anota com surpreendente neutralidade os detalhes (Lc 2,6-7), depois de ter justificado com maior delonga a viagem a Belém de Maria em estado (Lc 2,1-5) e alargando notavelmente o seu relato com o anúncio do seu nascimento a uns pastores (Lc 2,8-20). Narra-se o facto de um nascimento (Lc 2,6-7), que, como sinal que dará sentido à história humana (Lc 2,11-12), é verificado por gente simples, uns pastores. Narrativamente a manifestação angélica serve para dar por cumprida a promessa divina feita a Maria (cf. Lc 2,11-13) 87. O mensageiro de Deus anuncia-o, os pastores vêm-no e proclamam-no. Mas a mãe foi ela a direta destinatária do anúncio evangélico. Maria tem de ouvir a «a boa notícia, que será de grande alegria para todo o povo» (Lc 2,10) da boca de uns desconhecidos que, pelo seu trabalho, passavam em vigília a noite e não eram, por isso, bem vistos 88.
Recém-nascido, o filho de Maria não encontrou abrigo nem sequer numa pousada (Lc 2,7). É acolhido, mas não como o rei anunciado (Lc 1,32-33), nem sequer como menino bem-nascido (Lc 2,7). Quando, e com razão, podia ter-se ufanado por ter cumprido a sua missão, Maria não ouve vozes de anjos, recebe informação de uns pastores, gente considerada no seu tempo pouco merecedora de confiança (Bill 2,113-114). São uns pastores, que foram evangelizados por anjos, os quais por sua vez, ‘evangelizarão’ os pais de Jesus. Pode estranhar que tenha que guardar no coração, para ali o meditar, tudo quanto sucede diante dos seus olhos? (cf. Lc 8,4-15) .
«Maria, por seu lado, conservava todas estas coisas, meditando-as em seu coração» (Lc 2,19) 89.
Não é a mãe de Jesus, – o que não deixa de ser curioso! – a protagonista na crónica do parto. Maria aparece só no princípio (Lc 2,5-7) e no fim (Lc 2,16-19). Ao enquadrar o nascimento dentro da viagem obrigada a Belém 90, Maria tem que dar à luz na mais completa solidão, longe dos seus e à margem da habitual alegria que suscita uma nova vida (cf. Lc 1,57-58). Mais ainda, se antes os anúncios angélicos se tinham dirigido àqueles que recebiam a missão divina (Zacarias: Lc 1,11-20; Maria: Lc 1,28-33), agora são uns desconhecidos os destinatários da mensagem de um enviado do Senhor sem nome (Lc 2,10; cf. 1,11.26).
Evangelizados, os pastores não procuram algo desconhecido, seguem uma indicação precisa, um sinal: um bebé recostado num presépio (Lc 2,12) 91. Deixam de ser simples ouvintes e, sem demoras e em espírito de pronta obediência, tornam-se testemunhas oculares: somente gente simples pode identificar uma criança envolta em panos numa manjedoura como o Salvador (Lc 2,11; cf. 2,30; At 5,31; 13,23). Comprovada a sua veracidade, tornam-se evangelizadores, os primeiros (Lc 2,17.10), dos pais de Jesus.
Depois de ter dado à luz, Maria não recebeu de Gabriel anúncio algum. Nem entenderão o que lhes dizem os pastores, que representam esses pobres que vão ser os destinatários privilegiados da missão evangelizadora de Jesus (cf. Lc 4,18). Mas, ao contrário de todos, que se maravilham (Lc 2,18), ela mantém uma atitude de permanente busca de sentido (Lc 2,19). Mais do que meditar ou guardar como um tesouro o que acontece, procura percebê-lo e interpretá-lo. Não rejeita o que não compreende. Suporta o que não consegue entender. Em vez de se deixar ficar simplesmente surpreendida pelo seu Deus, procura entrar no mistério, ativando a inteligência do coração 92.
Antes de conceber o filho de Deus, Deus mandara um enviado. Depois de ter dado à luz, uma vez cumprida a missão, são-lhe enviados uns homens. A evangelizada por Gabriel para ser mãe, depois de o ser, agora é evangelizada por uns pastores. À maior familiaridade com Deus, experimenta agora menor proximidade d’Ele. A mãe de Jesus terá de guardar cuidadosamente os factos, o que viu e ouviu, e ponderá-los atentamente: “Maria não interpreta com o seu entendimento (noūs), mas com a sua vontade e afetividade: no seu coração” 93.
Dá impressão que, dando à luz Deus, Maria tivesse de fazer de mãe dele sem muitas luzes: dar à luz Deus torna a sua vida mais escurecida. É um passo mais no seu processo pessoal de discernimento: em Lc 1,29 perguntava-se; em Lc 1,34 interrogou-se; agora aqui, em Lc 2,19, entra dentro, dando voltas à cabeça 94; finalmente, em Lc 2,51 guardará na memória.
Ao apresentar o seu primogénito a Deus (Lc 2,22-40)
Da infância de Jesus, propriamente dita, Lucas escolhe só três acontecimentos significativos: a sua circuncisão e imposição do nome (Lc 2,21; cf. 1,59 95; Gn 17,10-13 96), a sua apresentação (Lc 2,22-40) e a sua perda, ambos no templo (Lc 2,41-50). A sua crónica fecha com um sumário em que volta a insistir na atitude contemplativa de Maria, ao acompanhar o crescimento de Jesus (Lc 2,51-52).
A apresentação do menino Jesus no Templo, aos oito dias, não era percetiva (Lv 12,3), assim como a visita anual por altura da páscoa antes da maioria de idade. Mas Lucas insistirá em que, seguindo a normativa legal (Lc 2,22.23.24.27), é como Maria tem que discernir a vontade de Deus, do qual ela se declarou escrava. Maria deve aprender a ver e a tocar, como Simeão (cf. Lc 2,30.28), a salvação de Deus através do fiel cumprimento da lei. Lucas, além disso, tem interesse em que seja em Jerusalém (cf. Lc 9,51.53; 13,22.23; 17,11; 18,31; 19,11; 24,47.49.52; At 1,8), onde se reconheça no infante o «Salvador», luz das nações e glória de Israel (Lc 2,30) e que, já adolescente, Jesus se proclame filho de Deus (Lc 2,49).
A apresentação de Jesus no templo tem três cenas, enquadradas por uma introdução (Lc 2,21) e uma conclusão narrativa (Lc 2,39-40). Ambos os extremos se referem à vida do menino e apresentam-na de modo inteiramente normal. O que se narra entre eles descobre o plano de Deus, que só captam os olhos de quem espera ver a salvação de Deus e o coração de quem tem o seu Espírito.
A primeira cena (Lc 2,22-24) situa a ação no templo e justifica a presença da família de Jesus nele, preparando o encontro com os dois anciãos. O narrador dá mais relevo à imposição do nome escolhido pelo anjo. A segunda (Lc 2,25-35) apresenta Simeão e a sua oração profética, na realidade um hino a Deus (Lc 2,29-32) e uma profecia para Maria (Lc 2,34-35). Na terceira (Lc 2,36-38), a anciã Ana, que vive diante de Deus e para Ele, aparece como louvando a Deus e proclamando Jesus como o libertador esperado.
21 Completando-se os oito dias para a circuncisão do menino, foi-lhe posto o nome de Jesus, o qual lhe tinha sido dado pelo anjo antes de ele nascer. 22 Completando-se o tempo da purificação deles, de acordo com a Lei de Moisés, José e Maria levaram-no a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor 23 (como está escrito na Lei do Senhor: “Todo o primogénito do sexo masculino será consagrado ao Senhor”) 24 e para oferecer um sacrifício, de acordo com o que diz a Lei do Senhor: “duas rolinhas ou dois pombinhos”.
25 Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão, que era justo e piedoso, e que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava com ele. 26 Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que ele não morreria antes de ver o Cristo do Senhor. 27 Movido pelo Espírito, ele foi ao templo. Quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprirem o que requeria o costume da Lei, 28 Simeão tomou-o nos braços e louvou a Deus, dizendo:
29”Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, podeis deixar ir em paz o vosso servo, porque meus olhos viram a vossa salvação, que preparastes diante de todos os povos, 30 porque os meus olhos viram a salvação, 31 que prometestes a todos os povos: 32 luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo”.
33 O pai e a mãe do menino estavam admirados com o que se dizia a respeito dele.
34 E Simeão abençoou-os e disse a Maria, mãe de Jesus: “Este menino está destinado a causar a queda e o soerguimento de muitos em Israel, e a ser um sinal de contradição, 35 de modo que o pensamento de muitos corações será revelado. Quanto a ti, uma espada trespassará a tua alma”.
36 Estava ali a profetisa Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era muito idosa; tinha vivido com o seu marido sete anos depois de ter casado 37 e então permanecera viúva até a idade de oitenta e quatro anos. Nunca deixava o templo: adorava a Deus jejuando e orando dia e noite. 38 Tendo chegado ali naquele mesmo momento, deu graças a Deus e falava a respeito do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém. 39 Depois de terem feito tudo o que era exigido pela Lei do Senhor, voltaram para a sua própria cidade, Nazaré, na Galileia. 40 O menino ia crescendo e fortificava-se: estava cheio de sabedoria, e a graça de Deus repousava nele.
Cumprir com a lei de Moisés leva Maria a Jerusalém, duas vezes. A primeira, sendo Jesus Infante de dias (Lc 2,22.39). A segunda, pouco antes de inaugurar a sua maioridade. (Lc 2,41-42). Essas duas subidas a Jerusalém marcam a infância e a adolescência de Jesus, tempo para maturar como homem sob a alçada da lei de Deus. O seu filho cresce como filho de Deus (Lc 2,40.52), enquanto que a sua mãe vive submetida à lei de Deus (Lc 22.23.24.39.41.42; cf. 12,6-8; Ex 13,1.13; Nm 18,15-16). A obediência ao querer de Deus não dispensa Maria do seguimento pontual da sua vontade escrita. Mãe, por ser serva, Maria educa com os seus atos o seu filho na obediência à lei de Deus (Lc 2,39) 97.
«Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia acerca do menino» (Lc 2,33)
Após os quarenta dias de ter dado à luz, a mãe devia purificar-se, não sendo a sua impureza moral, mas ritual (Lv 12,8) e o menino ser consagrado a Deus, em cumprimento da lei, e plenamente integrado no povo de Deus (Lc 2,22-24; Nm 18,15). No templo de Jerusalém esperava-os de novo o bom Deus…, e não muito boas notícias.
Um crente justo, que envelhecera sem perder a esperança de ver o «Messias do Senhor» (Lc 2,26), é agora o porta-voz de Deus. O seu Espírito está nele (Lc 2,25.26.27). O relato demora-se em descrevê-lo: vive esperando a consolação do seu povo (Lc 2,38; cf. 23,50-51); tem o Espírito de Deus, que o conduz ao templo no mesmo dia em que a obediência à lei tinha levado ali os pais de Jesus. Não há, pois, sorte nem azar, mas governo divino da história humana (cf. Lc 4,1.14-18), ainda que de forma diferenciada: ao templo vai Simeão e vê o «Salvador» (Lc 2,30); seus pais, pelo contrário, a cumprir com Deus, «segundo a lei de Moisés» (Lc 2,22).
Segurando o menino Jesus nos braços não é difícil para o ancião Simeão, «homem justo e piedoso» (Lc 2,25; cf. At 2,5; 8,2; 22,12), louvar um Deus que lhe deu mais consolação do que aquela que lhe tinha prometido. Mais do que «ver o Messias» prometido (Lc 2,26), toca-o, segurando-o «nos seus braços» (Lc 2,28), ao esperado Salvador, um menino. A salvação palpável é maior do que somente vislumbrada; a oferecida, melhor do que a esperada. Mas a salvação, entrevista agora no templo (Lc 2,29-32), pouco tem que ver com a anunciada pelo anjo em Nazaré (Lc 1,30-33), ou pelos pastores em Belém (Lc 2,10-14).
E eis que as previsões acerca do menino pioram notavelmente. Depois dos louvores a Deus, que tanto maravilharam os pais de Jesus (Lc 2,33), vem a sombria profecia sobre o filho e a mãe. «Este foi posto para que muitos em Israel caiam e se levantem; e será um sinal contradição» (Lc 2,34). Jesus vai dividir o seu povo, questionando a sua segurança; perante Ele é impossível permanecer imparcial. Sem solução de continuidade Simeão acrescenta o que implica para sua mãe. «Quanto a ti, uma espada de dor trespassará a tua alma» (Lc 2,35; cf. Ez 14,17). O destino do filho atingirá sua mãe. A Maria será trespassado o coração, perante a rejeição que irá sofrer o seu filho: à divisão dada no mundo acrescenta-se uma grande pena no seu coração 98.
Simeão anuncia que Jesus irá ser tropeço e causa de contradição em Israel (cf. Hch 28,26-28); diante dele não é possível a neutralidade nem a indiferença. Este não é o que Israel esperava, aquele que antes tinha sido indicado a Maria (cf. Lc 1,31-33). A mãe não se livra do filho nem do seu negro futuro, ser contradição e escândalo para o povo (cf. Is 8,14-15). Como, e com o seu filho, Maria estará no centro da repulsa ou acolhimento que Israel irá dispensar a Jesus.
A imagem da espada que divide a alma (cf. Jb 26,25) alude a uma constante dor, a uma rutura interior. A rejeição que vai sofrer o seu filho atingirá a sua alma. A mãe de Jesus viverá a sua existência profundamente ferida. A sua familiaridade com Deus não lhe poupará uma vida interiormente dilacerada. Uma espada no coração é o salário do serviço a Deus bem cumprido! Maria perde-se como mulher, para não perder, como mãe, o filho, nem como crente, a Deus. Um Deus bem servido impõe maiores servidões com menos apoios. Ou será que podia ser de outro modo?
Cumprida tolamente a lei, a família de Jesus regressa à Galileia (Lc 2,40; cf. Mt 2,23), “pondo deste modo um ponto final à história da infância de Jesus, em sento estrito” . Como acontecera com João Batista (cf. Lc 1,80), Jesus continua a crescer em Nazaré, como homem, em família, e diante de Deus, como filho. Com tanta brevidade como exatidão resumem-se doze anos da infância de Jesus. Maturidade humana e totalidade de graça tornam-se compatíveis no lar, na vida diária. E por mais que cresça, o filho mais se vai assemelhando à sua mãe (Lc 1,28.30) na posse da graça de Deus (Lc 2,40).
Adolescente, Jesus perde-se como filho de Maria, que o reencontra como Filho de Deus (Lc 2,41-52)
Uma peregrinação ao templo, quando Jesus está a atingir a maioridade legal, conclui de forma lógica o relato da sua infância (Lc 2,41-50; cf. Ex 23,14-17; Dt 16,16). Mas o episódio, colocado entre dois sumários (Lc 2,40.52), não se centra nem na viagem de ida a Jerusalém, nem na celebração da Páscoa, mas naquilo que sucede a seguir: a perda de Jesus no templo (Lc 2,41-52). Lucas, o único evangelista que recorda este incidente, leva ao seu final surpreendente um relato que começou com um infante nos braços de Maria (Lc 2,12.16): o recém-nascido (Lc 2,17.27-40), filho de Maria (Lc 2,43), acaba por declarar-se, a si mesmo, como filho de Deus (Lc 2,49)!
Como no episódio anterior (Lc 2,21-39), o templo é o lugar central da manifestação do mistério pessoal de Jesus. E apresenta-se estruturado segundo o mesmo modelo: subida a Jerusalém (Lc 2,42; cf. 2,22), revelação de Jesus (Lc 2,46-47; cf. 2,30-31), comentário sobre a mãe (Lc 2,48; cf. 2,39), regresso a Nazaré (Lc 2,51; cf. 2,39). O centro do relato está na dupla pergunta de Jesus a sua mãe (Lc 2,48), a qual não consegue compreender a razão do que está a acontecer (Lc 2,50), da necessidade imperiosa de que sucedesse (Lc 2,49).
41 Ora, todos os anos iam seus pais a Jerusalém à festa da páscoa; 42 E, tendo ele já doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume do dia da festa. 43 E, regressando eles, terminados aqueles dias, ficou o menino Jesus em Jerusalém, e não o soube José, nem sua mãe. 44 Pensando, porém, eles que viria em companhia pelo caminho, andaram
o caminho de um dia, e procuravam-no entre os parentes
e conhecidos; 45 E, como o não encontrassem, voltaram
a Jerusalém à procura dele. 46 E aconteceu que, passados três dias, o acharam no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os, e interrogando-os. 47 E todos os que o ouviam admiravam a sua inteligência e respostas. 48 E quando o viram, maravilharam-se, e disse-lhe sua mãe: Filho, porque procedeste assim para connosco? Eis que teu pai
e eu andávamos aflitos à tua procura. 49 E ele disse-lhes: Por que é que me procuráveis? Não sabíeis que devo tratar das coisas de meu Pai?
50 Eles não compreenderam as palavras que lhes dizia.
51 E desceu com eles, e foi para Nazaré, e era-lhes submisso. E sua mãe guardava no seu coração todas estas coisas.
52 E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens.
Publicamente, no templo de Jerusalém, Jesus deixa de ser filho de Maria e de José para declarar-se filho de Deus. É a primeira palavra –será também a última, cf. Lc 24,49 – que Jesus, mal atinge a maioridade, pronuncia no templo, durante a páscoa. Com a sua última afirmação declara-se filho de Deus, com plena consciência da sua missão: não somente reclama uma íntima relação com Deus, como proclama, também, a sua adesão pessoal ao projeto do Pai; e fá-lo logo que a sua mãe lhe tinha mencionado a angústia de José, seu pai (Lc 2,48). Aquilo que o anjo anunciou (Lc 2,1-20) e Simeão viu (Lc 2,21-22), é agora confirmado pelo próprio Jesus, ainda adolescente (Lc 2,41-51). A sua sabedoria humana pode ir crescendo ainda (Lc 2,52), mas já sabe o fundamental, que Deus é seu Pai (Lc 2,49).
«Não compreenderam o que Ele lhes disse. Desceu com eles e foi para Nazaré e era-lhes submisso. A sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração» (Lc 2,50-52).
Como judeus piedosos, os pais de Jesus costumavam ir a Jerusalém pela páscoa. Que levassem o seu filho significava a sua piedade pessoal e alguma preocupação educativa 100. A ausência de Jesus durante o regresso passa, num primeiro momento, despercebida (Lc 2,44). Não se aduz agora a razão da permanência de Jesus no templo, ainda que, depois, se deduza da sua resposta (Lc 2,49b: «não sabíeis que eu devia ocupar-me das coisas de meu Pai?»). Não passa o primeiro dia sem que os seus pais notem a sua ausência. Depois de três dias de angustiada procura (Lc 2,48) conseguem encontrá-lo. Encontrado do templo, entre doutores, «admirados com a sua inteligência» (Lc 2, 47), deixa atónitos, e ainda mais confundidos, os seus pais.
Todavia o filho adolescente não se tinha perdido, optou por ficar na casa de seu Pai (cf. Jo 2,17), ou melhor, tinha que fazê-lo, ainda que isso viesse a causar dor aos seus pais. A resposta de Jesus foi ainda menos compreensível do que o seu comportamento. Enfaticamente, com duas perguntas, questiona a postura da mãe; dá-lhe a entender perguntando, não se opõe afirmando. Nem a procura, nem a angústia, estão justificadas, porque não se tinha extraviado…, nem já lhes pertencia! Não foi a casualidade, mas o dever o que o separou deles. Jesus não fez o que quis, mas aquilo que se queria dele. Deve-se a Deus Pai. E não se perde quando se ocupa das suas coisas. Dever-se ao Pai e aos seus interesses liberta Jesus do poder paterno da sua família, tem prioridade sobre as relações mais sagradas (Lc 2,49). Os seus pais deveriam compreender que a sua filiação divina lhes impusera desligar-se deles e das suas expetativas (cf. Mt 16,23; Jn 8,29; 9,4; 14,31).
Nada de extraordinário, pois, que os angustiados pais ficassem desconcertados ao encontrá-lo no templo, «sentado entre os doutores» (Lc 2,48), e não tivessem entendido nem uma palavra do que lhes disse o seu filho (Lc 2,50); puderam sentir-se dececionados, senão mesmo enganados (cf. Gn 12,8; 20,9; 29,25; Ex 14,11; Jz 15,11). Nem a maternidade virginal, nem a estreita convivência diária, tornou mais acessível a Maria a pessoa e o destino do seu filho. Como qualquer crente, Maria tomou o episódio por normal, mas não menos doloroso, o facto de Jesus se ter extraviado. Depois de três dias de angustiada procura, pensou tê-lo recuperado…, para ter que aceitar, logo a seguir, tê-lo perdido, desta vez sim, definitivamente (Lc 2,48-49).
Adolescente ainda, proclamou Deus como Pai (Lc 2,49), tal como o voltará a fazer antes de morrer (Lc 23,46). E não foi mais custoso para Maria que tivesse de ver no seu filho o filho de Deus, mas o ter de a partir de então, conviver com um filho que se sabia, e assim se queria, de Deus (Lc 2,49). Sem o dizer expressamente, Lucas dá-nos a entender que Maria viveu essa situação, desde a adolescência de Jesus até ao início do seu ministério público (cf. Lc 3,23). A mãe, para continuar a sê-lo (cf. Lc 8,19-21; 11,27-28), teve de tornar-se mais crente 101, guardando «no seu coração todas essas coisas» (Lc 2,51) que não compreendia com a mente. Será casual que esta tenha sido a última reação de Maria no relato da infância de Jesus?
A filiação divina, reivindicada tão cedo por Jesus, não o dispensou de viver submetido aos seus pais durante a maior parte da sua vida (cf. Lc 4,22; Mc 6,3; Mt 13,55). Regressa com os seus pais a Nazaré e vive debaixo da sua potestade. Esse regresso, depois de uma declaração tão contundente da sua identidade, torna mais extraordinário o ordinário: submissão a uns pais, que não são, vendo bem, o seu Pai. A Maria não lhe passa desapercebido o que acontece: o seu filho amadurece como homem e como filho de Deus, simultaneamente. E mesmo sem entender, tão pouco o esquece. No coração guarda o sucedido: aquilo que lhe acontece não passa à margem, sem incidências, sem deixar rasto nela (Lc 2,51b) 102.
Ela vê crescer diante de si o seu filho, como homem. E ao lado dele deve crescer ela como crente. Conviver com Deus, sem o entender é a forma mariana para não o perder (Lc 2,19; cf. 8,19-21; 11,27-28). Entretanto, Jesus continua a progredir em sabedoria, (Lc 2,52), em idade e em graça diante de Deus e dos homens. Maria acompanha, sempre mãe, o crescimento do seu filho com o crescimento da sua fé. No longo silêncio de Nazaré torna-se homem Deus e no seio de uma família aprende a ser homem. Ambos os processos acontecem sob o olhar silencioso e contemplativo de Maria, a mãe de Jesus.
Maria deve ter-se sentido um tanto surpreendida, senão mesmo incomodada com o seu Deus. Somente se lhe tinha proposto dar à luz o filho de Deus; foi unicamente a isso que assentiu. Por isso, podia esperar voltar ao seu antigo projeto de vida (Lc 1,28: «virgem desposada com um homem chamado José») uma vez realizado o projeto de Deus (Lc 1,31: «conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus»). Não foi assim. Terá de iniciar uma aventura com Deus justamente no ponto em que pensava que teria concluído. Deus não deixa facilmente descansar os seus melhores servos. Aquele que lhe jura obediência está “perdido”.
Uma nova etapa de fé, aberta e sustentada por um contínuo discernimento, abre-se quando Maria, tendo terminado a sua maternidade em Belém, tem de ouvir da boca de uns desconhecidos o sentido que Deus vai dar ao nascimento do seu filho. Os pastores, gente simples e marginalizada, são os escolhidos por Deus para receberem as primícias do Evangelho… e evangelizar, depois a mãe de Jesus; eles são a “personificação de uma atitude de espontânea credulidade diante da mensagem que se lhes acaba de transmitir” 103. Só os simples são capazes de identificar, sem perder a fé, a imensidade de Deus na criança que repousa num presépio.
Por não se escandalizarem com um Deus tão insignificante tornam-se evangelizadores de Maria. A mãe de Deus reage deixando-se evangelizar por aqueles que Deus lhe enviou (Lc 1,12.15-16). Ao contrário dos pastores, que caminham louvando a Deus, e das pessoas, que ficam admiradas por quanto lhos ouviram contar, Maria tenta chegar ao sentido mais profundo do que tinha vivido e de tudo o que lhe contaram. E sem deixar de indagar pessoalmente tudo quanto Deus lhe está dizendo no que acontece, empenha-se em viver as coisas com o coração. Guarda tudo o que lhe acontece e não compreende logo ali, onde ninguém pode entrar a não ser somente Deus (cf. Mt 6,6). Não foi por entender com a mente, mas por guardar no seu coração como Maria discernia, contemplando, quer dizer, “compreende e experimenta na sua carne aquilo que crê” 104.
O Deus que não se entende pode parecer insignificante e inservível, todas as vezes que não se tenha a coragem de mantê-lo como objeto de contemplação. Olhar tudo com carinho e guardá-lo com atenção é o método mariano de se ficar diante de Deus que, por fazer-se para nós como algo pequeno ou demasiado normal, não chegamos a compreender. Não poderemos, porventura, como Maria, dar corpo a Deus. Mas, pelo menos, poderíamos atrever-nos a olhá-lo e a adorá-lo com o coração: é ali onde Deus cabe como Deus tão entranhável como incompreensível.
Cumpridos os dias de purificação, os pais de Jesus apresentaram o seu primogénito a Deus no templo, em obediência à lei (Lc 2,22). Ao fazê-lo Maria bem pode dar por cumprida a missão que tinha aceitado, dar um filho a Deus (Lc 1,31.35). Teve de aprender que dificilmente se foge de Deus a quem se deu crédito. No templo esperavam aqueles que, em nome de Deus, lhe desvelariam o futuro do seu filho e o seu próprio. Causa surpresa, se não mesmo incompreensão, que Deus volte a dar a conhecer a Maria o seu futuro por meio de duas pessoas desconhecidas. Que iria dar à luz um filho já um anjo lho anunciara (Lc 1,31-32). Que a sua vida estaria repassada de dor foram uns estranhos que lho disseram (Lc 2,34-35).
Em Jerusalém, e durante uma peregrinação por altura da Páscoa (Lc 2,41-42), Maria tinha perdido o seu filho adolescente. O convívio com Jesus ia-se tornando cada vez mais penoso, menos tranquilo… Quem disse que a familiaridade com Deus devia tornar-se confortável e sem sobressaltos? É consolador que Maria tenha passado por essa experiência, tão habitual em nós, o perder a Deus 105. Um Deus que pode extraviar-se de nós, não merecerá maiores cuidados? Um Deus que podemos perder, e no Templo, não faz com que nós o tratemos melhor, o atendamos melhor? Passar pela experiência da sua perda não deve constituir uma vivência negativa nem, muito menos, traumática, se nos damos conta de que essa foi uma experiência mariana. Ou por acaso não nos consola saber que estamos na companhia da Mãe de Deus nesses momentos nos quais não sabemos para onde foi parar Deus?
Mas se nos consola saber que um dia também Maria perdeu Jesus, também nos deveria inspirar ainda mais a sua procura ansiosa até o encontrar. Não o encontrou só com o facto de notar e lamentar a sua ausência. Nem se desculpou ao aperceber-se de que fora ela a responsável por isso. Foi imediatamente procurá-lo entre os familiares e amigos, acabando por encontra-lo no Tempo – poderia ser de outro modo? – no Templo, falando de Deus. Será que nós somos assim industriosos, quando perdemos a Deus? Somos capazes de suportar a sua ausência nas nossas vidas, somente porque nos parece que Ele não deveria ter-nos abandonado ou que não está a ser demasiado justo escondendo-se de nós? Onde é que O procuramos?
O encontro de Jesus não foi um final feliz para Maria 106. A resposta de Jesus à queixa de sua mãe (Lc 2,48: «porque procedeste assim connosco?») foi, no mínimo, um ato de desconsideração (Lc 2,49: «Porque me procuráveis?»). Maria não se sentiu respeitada na sua dor, nem compreendida na sua angústia. Não entendeu o filho, pois não o recuperou de todo, quando o encontrou; começou a perdê-lo à medida que Ele queria ser filho de Deus. Mas aceitou-O como Ele queria ser, diante de tudo e de todos, o filho de Deus. Era o seu dever indeclinável, o seu destino agora assumido (Lc 2,49). Teve de acompanhar o crescimento do seu filho e a sua autoconsciência divina como crescimento da sua fé pessoal 107. Será que existe outro método de acompanhar a Deus na vida? Pode-se conviver com Deus em casa sem uma fé total no coração?
Maria lembra-nos que Deus pode sempre pedir-nos mais do que lhe tenhamos dado já. O dever cumprido não nos exime da obediência do que está para vir. Ser mãe de Deus não a tornou mais ditosa do que era antes, mas manteve-a mais perto do seu filho. Ele será para ela mais motivo de tropeço e ela, mãe dolorosa. Deus não permite que ninguém entre na sua própria vida. E o que é ainda mais estranho é que nunca diz o que quer de alguém de uma vez por todas; vai-o manifestando passo a passo e através de mediações menos imponentes. Apresenta as suas novas exigências, depois de se terem cumprido as anteriores: “a cada descoberta segue um novo enigma” 108. Superada a prova da obediência (Lc 1,38.45), Maria iniciou um processo de aprendizagem, marcado pela incompreensão (Lc 2,19.51), não isento de dor (Lc 2,35) nem imune de solidão (Lc 8,20-21).
Assim, pedagogicamente, sem esmagar com tarefas acumuladas Deus favorece o crente para que se mantenha em estado de contínua obediência. É bem verdade que nem todos aguentamos essa pedagogia, nem o ritmo, de Deus. E é nisso em que se estriba a diferença. Maria, embora mãe, sempre se manteve serva do seu Deus. Será que estamos dispostos a aprender com Maria?