As aparições marianas ou mariofanias criam sempre alguma incomodidade aos teólogos que, por essa razão, de modo geral, não lhes dedicam particular atenção. Mesmo no campo da reflexão teológica sobre Maria, é frequente depararmo-nos com a ausência de uma reflexão teológica sobre este fenómeno. Tal desconfiança deve-se ao preconceito de que tais fenómenos nos desviam do essencial da fé cristã, detendo-se no que é secundário. Trata-se, porém, de um preconceito, que não resiste a uma avaliação objetiva.
No caso concreto de Fátima, a sua mensagem conduz precisamente ao essencial da fé cristã; “reflete, de diferentes pontos de vis- ta, o próprio coração da revelação” 1. Na mensagem de Fátima e no testemunho dos três videntes há um “nexus mysteriorum”: ali entrecruzam-se as dimensões fundamentais da autocomunicação de Deus, Uno e Trino e da livre resposta de fé do homem e da mulher a ela2. A mensagem de Fátima conduz-nos ao essencial da fé cristã e “permite-nos aprofundar a lógica mais radical da revelação do Deus Trindade: o amor de Deus que se manifesta como misericórdia para superar, a partir de dentro, os dramas da história humana” 3.
Nesta breve apresentação, começaremos com a história de Fátima: do acontecimento e das suas interpretações. Num segundo mo- mento, ocupar-nos-emos do conteúdo da mensagem e da espiritualidade que daí emerge.
Quanto à história, importa começar pelos acontecimentos que es- tão na origem do fenómeno Fátima.
As fontes fundamentais para o conhecimento das aparições são as seguintes:
Um útil instrumento a quem desejar contactar com o acontecimento de cada uma das aparições, compilando e comparando critica- mente as Memórias da Irmã Lúcia e os interrogatórios, bem como outra documentação relevante, é a obra do anterior responsável pelo Departamento de Estudos do Santuário Luciano Coelho Cristi- no: As aparições de Fátima: reconstrução a partir dos documentos, (2.ª edição, 2022). 4
O Santuário de Fátima nasceu de um fenómeno sobrenatural – assim foi entendido pelos intervenientes e reconhecido como tal pela autoridade eclesiástica competente – constituído por um conjunto de hierofanias. Os videntes de Fátima foram três crianças: Lúcia, Fran- cisco e Jacinta. Lúcia era prima dos dois irmãos Francisco e Jacinta. Eram naturais da aldeia de Aljustrel, da freguesia de Fátima, e dedicavam-se a pastorear o rebanho de ovelhas das suas famílias.
É relevante dizer o óbvio, pois frequentemente damos por conheci- do aquilo que efetivamente o não é.
Na história de Fátima encontramos três ciclos de aparições:
Em 1916 tiveram lugar as três aparições do Anjo, que se apresentou a si mesmo como “Anjo da Paz” e, posteriormente, também como “Anjo de Portugal”. A primeira aparição aconteceu na primavera, em data desconhecida, e nessa aparição, o Anjo ensinou aos Pastorinhos uma oração. Meses depois, no verão, aconteceu a segunda aparição, na qual o Anjo exortou os videntes à oração e à reparação. No outono, o Anjo apareceu uma terceira vez, trazendo a comunhão eucarística aos videntes. Ensinou-lhes uma segunda oração, trinitária, de adoração.
No ano seguinte, em 1917, acontecem as seis aparições de Nossa Senhora, uma em cada mês, de maio a outubro.
A primeira aparição foi a 13 de maio, no lugar chamado Cova da Iria, onde atualmente se ergue o Santuário de Fátima. Nessa aparição, a Virgem Maria afirma que vem do Céu e diz aos pastorinhos: “Vim para vos pedir que venhais aqui seis mezes seguidos, no dia 13 a esta mesma hora, depois vos direi quem sou e o que quero” 5. Pe- de-lhes que rezem o terço todos os dias e este será o pedido mais vezes feito por ela, repetido em cada uma das seis aparições.
Na segunda aparição, a 13 de junho, Nossa Senhora prometeu levar os videntes Francisco e Jacinta para o Céu em breve, mas disse à Lúcia que ela deveria ficar mais tempo e confia-lhe uma missão: “Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração” 6.
A terceira aparição, em julho, é a célebre aparição do chamado “segredo de Fátima”, cuja terceira parte, que fala da perseguição à Igreja, só foi conhecido no ano 2000.
A quarta aparição foi a única que não aconteceu a 13 de agosto, porque o Administrador do Município – Vila Nova de Ourém – levara os pastorinhos, impedindo-os de estarem na Cova da Iria no dia 13, para os convencer a revelar-lhe o segredo. A aparição teve lugar nos Valinhos, perto de Aljustrel, no dia 19 de agosto.
A quinta aparição aconteceu a 13 de setembro, de novo na Cova da Iria.
Por fim, a sexta aparição, a 13 de outubro, é a aparição do milagre do sol, visto por uma multidão, entre 50.000 e 70.000 pessoas. Nessa aparição, Nossa Senhora apresenta-se como a Senhora do Rosário e pede: “quero dizer-te que façam aqui uma capela em minha honra”7. O Santuário de Fátima nasce deste pedido de Nossa Senhora: inicialmente, logo em 1919, é construída a Capelinha das Aparições, depois a Basílica de Nossa Senhora do Rosário, o amplo recinto de oração e, finalmente, a Basílica da Santíssima Trindade.
Houve ainda uma sétima aparição, mas teve caráter pessoal e não deve ser confundida com estas: tratou-se de uma aparição de Nossa Senhora a Lúcia, já depois da morte de Francisco e Jacinta, a 15 de junho de 1921. Lúcia preparava-se para deixar definitivamente Fátima.
Por fim, temos o ciclo cordimariano, de 1925 a 1929, quando Lúcia era já religiosa Doroteia e se encontrava em Espanha.
Em 1925, em Pontevedra, Nossa Senhora fala da devoção dos primeiros sábados de cada mês. Em 1929, em Tuy, uma nova aparição, é pedida a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria.
Quando falamos de “mensagem de Fátima”, referimo-nos, antes de mais, aos conteúdos destas aparições; mas também ao testemunho de vida dos videntes, dois dos quais canonizados.
Desde as aparições de Nossa Senhora que as multidões passaram a marcar presença em Fátima. O período de 1919 a 1930 é o da construção do Santuário, da configuração das práticas cultuais e disciplinação e organização das peregrinações.
Mas falemos também da história da interpretação de Fátima. Procurando simplificar um processo complexo, podemos identificar cinco fases no estudo e interpretação do acontecimento Fátima 8. A primeira fase assinala, logo depois das aparições, o período de inquéritos e o processo canónico de reconhecimento da autenticidade das aparições, concluído em outubro de 1930.
A segunda fase, apologética, começa em 1923, quando ainda de- corre o processo canónico, e prolonga-se até aos anos 60 do século XX. É neste período que se publicam os primeiros documentos sobre Fátima, como as Memórias da Irmã Lúcia e outros textos relevantes. Esta fase apologética produziu uma leitura catequética da mensagem de Fátima, enquadrando-a no universo da doutrina católica, mas não ainda uma leitura especificamente teológica.
A terceira fase caracteriza-se pela abordagem teológico-pastoral, em ordem a conseguir uma sistematização doutrinal dos grandes tema fatimitas, e pelo rigor historiográfico no tratamento crítico das fontes. O arranque simbólico desta fase é assinalado pela entrega ao claretiano espanhol José Maria Alonso a missão de preparar uma história rigorosa de Fátima, a partir da documentação recolhida. É nesta fase que se lançam as bases para a publicação e tratamento crítico das fontes.
A fase seguinte, marca o início da colaboração regular da Universidade Católica Portuguesa com o Santuário, quer no tratamento da documentação, em ordem à sua publicação, quer na organização de congressos, que permitiram aprofundar as várias dimensões da mensagem de Fátima. É nesta fase que se inicia a publicação da Documentação Crítica de Fátima, iniciada em 1992 e concluída em 2013. No mesmo ano de 1992, por ocasião da celebração dos 75 anos das aparições, realizam-se dois congressos internacionais; e depois desses, muitos outros congressos permitiram aprofundar di- versos aspetos e dimensões da mensagem de Fátima, criando as condições para uma leitura teológica mais rica da mensagem.
Atualmente, estamos no quinto período: a fase da síntese crítica de Fátima e da sua mensagem. Podemos dizer que esta fase se iniciou na celebração dos 90 anos das aparições, em 2007, com a realização de um congresso com o tema “Fátima para o Século XXI” e que pretendeu apresentar uma leitura global da história e mensagem de Fátima9. Nesse mesmo ano foi publicada uma outra obra de síntese: a Enciclopédia de Fátima 10. Este período, que se estende até hoje, caracteriza-se pela passagem “do paulatino abandono do discurso político sobre Fátima ao gradual aparecimento de sínteses interpretativas do fenómeno” 11.
O Centenário das Aparições ofereceu a oportunidade para fazer o status quaestionis sobre a investigação acerca de Fátima, nas várias dimensões, e os anos que se lhe seguiram têm permitido dar continuidade a esse trabalho. Recordo dois congressos internacionais sobre Fátima, por ocasião do Centenário das Aparições, e que têm as suas atas publicadas:
Deixando a parte histórica, olhemos para os conteúdos fundamentais da Mensagem de Fátima.
No centro da mensagem de Fátima está o “evangelho da Trindade”14. Nos gestos e nas palavras, quer do Anjo da Paz quer de Nossa Senhora,
“Deus revela-Se a Si mesmo no seu mistério trinitário sus- citando uma resposta generosa de adoração, do dom de si e de reparação da parte dos pastorinhos […] O acontecimento de Fátima coloca o acento sobre a representação de Deus como luz que ilumina todas as realidades, como Trindade que devemos adorar e amar”15.
Assim, o essencial da mensagem de Fátima é “o despertar para a urgência de centrar radicalmente a nossa vida em Deus, como o único que deve ser amado e adorado” 16. O modo de nos falar de Deus, Santíssima Trindade, e de a Ele conduzir não são os conceitos teológicos ou o discurso especulativo, mas sim, o caminho da inten- sa experiência espiritual 17.
Ao tempo das Aparições, floresciam ideologias e regimes políticos apostados em afastar Deus definitivamente do horizonte da humanidade, num ateísmo militante e combativo. Hoje, mais insidioso do que esse combate declarado contra Deus, é a indiferença religiosa, a tendência a viver como se Deus não existisse. De forma mais ou menos discreta, pretende-se “apagar” qualquer sinal de Deus no es- paço público, remetê-lo à clandestinidade. Neste contexto em que vivemos, a afirmação clara e inequívoca do primado de Deus, Santíssima Trindade, na vida dos crentes mantém toda a sua atualidade e urgência.
Porque o mistério pascal é o acontecimento culminante da história da revelação e da salvação, acontecimento no qual se realiza plenamente no mundo e se revela a paternidade de Deus a respeito do seu Filho único e de onde brota para o mundo o Espírito da filiação divina18, é importante destacar o “horizonte pascal da Mensagem de Fátima”, como o faz Eloy Bueno de la Fuente, que afirma:
“Embora esta perspetiva não tenha sido destacada nas publicações sobre Fátima, a melodia pascal ressoa com clareza: a luz, a beleza, a alegria acompanham a presença da Senhora. Ela deixa-se ver e escutar a partir da glória do Ressuscitado, à qual ela acedeu em corpo e alma” 19.
O carácter pascal da mensagem de Fátima sublinha a centralidade de Jesus Cristo, sobretudo na sua presença eucarística. Mas este carácter cristocêntrico da Mensagem fica também patente na oração do Rosário, que nos conduz à meditação dos mistérios de Cris- to, que têm no mistério pascal o seu centro e sentido pleno.
Ainda neste horizonte trinitário da Mensagem de Fátima, importa sublinhar uma dimensão pneumatológica e eclesial. Pouco depois da sua peregrinação ao Santuário da Cova da Iria, o Papa Bento XVI afirmou:
“Não há Igreja sem Pentecostes. E gostaria de acrescentar: não há Pentecostes sem a Virgem Maria. Foi assim no início, no Cenáculo […] E é sempre assim, em todos os lugares e tempos. Disto também eu fui testemunha há poucos dias, em Fátima. O que viveu, de facto, aquela imensa multidão, na esplanada do Santuário, onde todos éramos realmente um só coração e uma só alma? Foi um renovado Pentecostes. No meio de nós estava Maria, a Mãe de Jesus. É esta a experiência típica dos grandes Santuários marianos: onde quer que os cristãos se reúnam em oração com Maria, o Senhor doa o seu Espírito” 20.
A dimensão eclesial faz-se patente, de forma muito explícita, no chamado “Segredo”, na referência ao “Bispo vestido de branco” e à Igreja peregrina e mártir; e está implícita no pedido de Nossa Senhora de edificar, na Cova da Iria, uma capela, pois o edifício da igreja é sempre símbolo da Igreja de pedras vivas que aí se reúne para celebrar a presença de Jesus Cristo; e exprime-se na participação nas celebrações sacramentais, sempre expressões por excelência da Igreja.
A Mensagem de Fátima tem também uma clara dimensão sacra- mental, centrada sobretudo na Eucaristia. A mensagem de Fátima é profundamente eucarística. Se o ciclo angélico, em 1916, foi o “prelúdio eucarístico” da Mensagem, o ciclo cordimariano, sobretudo na aparição de Tui em 1929, constitui o seu “epílogo eucarístico” 21.
É significativo notar que é no horizonte trinitário que se encontra o contexto próximo em que está inserida a dimensão eucarística da Mensagem de Fátima. A Eucaristia é sacramento eficaz não apenas da presença viva de Cristo, mas também da Santíssima Trindade e da nossa incorporação nesse mistério de comunhão salvífica. A Santíssima Trindade é origem e meta da Eucaristia: no Pai, pelo Filho, no Espírito está a fonte verdadeira e o ponto culminante de todo o mistério eucarístico 22. É isso que sublinha a Mensagem de Fátima com particular veemência.
Por outro lado, além da Eucaristia, também a celebração do sacra- mento da Penitência e Reconciliação tem importância fundamental na Mensagem de Fátima. Nas aparições do Anjo e de Nossa Senhora, a conversão ocupa um lugar fundamental. Claro que a conversão não se reduz à celebração do sacramento da Penitência, mas encontra aí a sua mais importante expressão e realização sacramental. A própria peregrinação a Fátima é marcada por esta dimensão sacramental relativa à Penitência: toda a peregrinação autêntica é caminho de conversão, que aponta para a celebração do sacramento da Penitência.
Por fim, a dimensão mariana de Fátima é evidente. Segundo o testemunho dos videntes, Maria apresentou-se como a “Senhora do Rosário”, mostrou-se revestida de luz e espargindo a luz de Deus, e revelou o mistério do seu Imaculado Coração. O Pe. Alonso, grande estudioso de Fátima, considerava a revelação do Imaculado Coração de Maria a “alma da mensagem de Fátima” 23.
Desde as aparições do Anjo, em 1916, que a referência ao Imaculado Coração de Maria acompanha todas as aparições de Fátima. A partir da aparição de Nossa Senhora, em junho de 1917, torna-se elemento fundamental na Mensagem. Na aparição de junho, Nossa Senhora entrega à vidente Lúcia uma missão:
“Jesus quer servir-Se de ti para Me fazer conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração”. E faz-lhe uma promessa: “O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus”24.
Nesta promessa estão sintetizados os dois aspetos mais relevantes da espiritualidade do Imaculado Coração de Maria: a intercessão de Maria e a sua exemplaridade. Na aparição de Nossa Senhora, em julho, a revelação aprofunda-se e, no contexto do Segredo, anuncia-se o triunfo final do seu Coração Imaculado. Nessa aparição, Nossa Senhora promete voltar novamente para pedir a comunhão reparadora dos primeiros sábados e a consagração da Rússia. O primeiro pedido foi feito na aparição de Pontevedra (Espanha), em 1925; o segundo, na aparição de Tui (Espanha), em 1929.
A invocação do Imaculado Coração de Maria compreende-se à luz do significado bíblico do “coração”. Na Bíblia, o coração é “sacramento” da pessoa, que manifesta a sua mais íntima e absoluta singularidade diante de Deus e diante uns dos outros. No Imaculado Coração de Maria, é todo o seu ser e mistério que é visado. O coração designa a própria pessoa da Virgem Maria; o seu “ser” íntimo e único; o centro e a fonte da sua vida interior: inteligência e memória, vontade e amor. No seu comentário teológico, à terceira parte do Segredo de Fátima, o então Cardeal J. Ratzinger, depois Papa Bento XVI, diz:
“O termo «coração», na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração imaculado» é, segundo Mt 5, 8, um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat — «seja feita a vossa vontade» — se torna o centro conformador de toda a existência.” 25
As várias dimensões elencadas – trinitária, cristológica e pascal, pneumatológica e eclesial, sacramental e mariana –, são constitutivas de toda a verdadeira espiritualidade cristã e encontram-se na Mensagem de Fátima, permitindo-nos falar de uma verdadeira espiritualidade de Fátima.
Stefano De Fiores, ilustre professor de Teologia Espiritual e de Mariologia, comparando Fátima com a mensagem de outras aparições, destacava como marca da originalidade e especificidade de Fátima, entre outros aspetos, a espiritualidade: “das recomendações de práticas de piedade, oração e conversão, Nossa Senhora de Fátima passa a uma autêntica espiritualidade, condensada na devoção ou consagração ao seu Imaculado Coração” 26.
Segundo este autor, Fátima apresenta outras características originais, tais como a perspetiva histórica e política em que se coloca, a “solicitude pelo futuro” e não apenas pelo presente da vida da Igreja e do mundo, a “influência universal sobre a piedade dos fiéis e até dos bispos e dos papas” 27; mas é sobretudo a nível da espiritualidade que Fátima se destaca: “Fátima está mais além de um projeto simplesmente devocional, porque interessa à Virgem Santíssima fazer abraçar uma autêntica «espiritualidade mariana», expressa na consagração a Deus, mediante o Imaculado Coração”. 28
A espiritualidade de Fátima é uma espiritualidade mariana29, que tem como traço mais caracteristico a devoção ao Imaculado Coração de Maria, elemento que une às diversas dimensões da Mensagem.
Das dimensões elencadas emergem atitudes, que marcam a vivência espiritual a que a Mensagem de Fátima desafia. Destacaremos, de forma breve, algumas delas.
A adoração é a atitude religiosa fundamental. Como atitude crente especificamente cristã, a adoração é sempre acolhimento da revelação de Deus como Trindade Santíssima. O cristão não adora uma qualquer força cósmica indeterminada, uma qualquer divindade impessoal: adora o Deus uni-trino, que vem ao seu encontro, que se lhe revela, manifestando o seu amor.
Na Mensagem de Fátima, a adoração ocupa um lugar de especial relevo e está diretamente ligada à dimensão trinitária e eucarística da Mensagem. As três aparições do Anjo centram-se na revelação do rosto trinitário de Deus, não de modo especulativo, mas doxo- lógico30, através da adoração. Aí, crer, esperar e amar são a forma, por excelência, da adoração, que “concentra em si mesma as três virtudes” 31. Também nas aparições de Nossa Senhora, a adoração aparece como atitude fundamental. Na luz que irradia das mãos de Nossa Senhora, os Pastorinhos experimentam a presença de Deus, Santíssima Trindade, que os envolve completamente, e respondem com a adoração.
A adoração a Deus marca indelevelmente a vida dos videntes, não apenas enquanto gesto de oração, mas também como atitude existencial de dar a Deus o lugar central nas suas vidas.
Uma outra atitude fundamental na espiritualidade de Fátima é a da reparação: a Mensagem de Fátima desafia à vivência de uma espiritualidade reparadora. A reparação surge, desde logo, nas aparições angélicas de 1916, assume um lugar de relevo nas aparições de Nossa Senhora e concretiza-se na resposta vital, dada pelos Pastorinhos de Fátima 32.
A reparação, que percorre toda a Mensagem de Fátima e marca indelevelmente a sua espiritualidade, é teocêntrica e trinitária, como aparece de forma explícita nas orações ensinadas pelo Anjo, mas é
igualmente cristológica e eucarística; e é também explicitamente mariana: a atitude de reparação está intimamente unida ao lugar fundamental do Imaculado Coração de Maria, na espiritualidade de Fátima. A devoção dos primeiros sábados 33, especificamente fatimita e que “pode considerar-se um compêndio de toda a mensagem” 34 de Fátima, é uma concretização desta atitude reparadora para com Maria.
A reparação, na Mensagem de Fátima, está profundamente ligada à adoração. Adoração e reparação aparecem unidas e indissociáveis, na espiritualidade de Fátima.
A espiritualidade de Fátima está ainda profundamente marcada pelo apelo veemente à conversão e à penitência. O pedido repetido para que os homens não ofendam mais a Deus, a tristeza de Nossa Senhora como expressão da não indiferença diante dos pecados cometidos, o apelo à oração e aos sacrifícios pelos pecadores marcam a Mensagem de Fátima do primeiro ao último momento. Na vida dos pequenos videntes, não apenas se verifica um autêntico movimento de conversão, que permite fazer um retrato diferente antes e depois das aparições 35, como a preocupação pela conversão dos pecadores os acompanhará permanentemente.
No seu comentário teológico à terceira parte do Segredo, o então Cardeal J. Ratzinger dizia: “A palavra-chave desta (terceira) parte do «segredo» é o tríplice grito: “Penitência, Penitência, Penitência!” Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: «Pænitemini et credite evangelio» (Mc 1, 15)”.36
A um outro nível, a espiritualidade de Fátima também se exprime no compromisso para com os irmãos, como expressão de amor. O encontro com Deus, que é Amor, desperta nos Pastorinhos a própria capacidade de amar 37. Eloy Bueno de la Fuente recorda, a este propósito, que S. João da Cruz dizia que aos bem-aventurados parece-lhes pouco ir para o Céu sozinhos. Isso mesmo expressa Jacinta, na sua linguagem simples, em diálogo com Lúcia: quando esta lhe recordou que ela iria para o Céu, conforme prometera Nossa Senhora, Jacinta respondeu: “Pois vou […] mas eu queria que toda aquela gente para lá fosse também”38. A Ir. Lúcia comentará mais tarde que, precisamente porque Deus é Amor, e porque só o amor nos pode unir a Deus, “este amor não se contenta com ser feliz; quer levar o próximo a partilhar com ele da mesma felicidade” 39.
Uma espiritualidade que vá beber a sua inspiração à Mensagem de Fátima tem necessariamente esta dimensão de solidariedade e de compromisso para com os irmãos. O Papa Bento XVI afirmou que Fátima é “uma escola de fé e de esperança, porque é, também, es- cola de caridade e de serviço aos irmãos” 40.
Mais de um século depois das aparições de Fátima, a pergunta pela atualidade da sua Mensagem impõe-se. Depois de, no ano 2000, o Papa João Paulo II ter decidido revelar a terceira e última parte do chamado Segredo de Fátima, muitos foram os que anunciaram o fim do interesse por Fátima, por entenderem que era a curiosidade sobre o conteúdo daquele documento que mantinha as pessoas ligadas a Fátima. Por outro lado, parecia que a profecia contida no Segredo estava já plenamente realizada, pelo que se tornava inevitável a pergunta pelo interesse daqueles conteúdos.
Na sua peregrinação a este Santuário, em 2010, na homilia da missa do dia 13 de maio, o Papa Bento XVI afirmou:
“Iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída. Aqui revive aquele desígnio de Deus que interpela a humanidade desde os seus primórdios: «Onde está Abel, teu irmão? […] A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim» (Gn 4, 9). O homem pôde despoletar um ciclo de morte e terror, mas não consegue interrompê-lo… Na Sagrada Escritura, é frequente aparecer Deus à procura de justos para salvar a cidade humana e o mesmo faz aqui, em Fátima, quando Nossa Senhora pergunta: «Que- reis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele mesmo é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?» (Memórias da Irmã Lúcia, I, 162)” 41.
Basta pensarmos no tema da paz, central na Mensagem de Fáti- ma e hoje dramaticamente presente nas nossas vidas; no lugar da importância da oração, que o Papa Francisco escolheu como tema deste ano de preparação do Jubileu e que está no coração da Mensagem de Fátima; ou no lugar de Deus nas nossas vidas, neste tem- po em que tantos contemporâneos nossos vivem como se Deus não existisse… para nos darmos conta da atualidade de Fátima e da sua Mensagem.